76 cartas do presídio Venceslau II. A incômoda sensação de que os vilões também estão no Estado

As visitas viajam 9 horas de São Paulo para percorrer 610 quilômetros até Presidente Venceslau, no interior do estado. Normalmente, o trajeto é feito durante a madrugada para estar às 6 horas da manhã na porta do presídio. Quando são liberadas para entrar, os parentes dos presos vão até as celas acompanhados de homens armados com espingardas calibre 12 vestindo roupas e toucas pretas. Os cachorros latem e assustam as visitas, principalmente as crianças. Todo fim de semana é a mesma coisa, quando começa a rotina de visita a presos em Venceslau II.

“Nossas famílias não oferecem nenhum risco. Chegam às celas assustadas, onde são trancadas com familiares de mais 5 ou 6 detentos e podem permanecer por 4 horas. São cerca de 40 pessoas juntas em 20 metros quadrados. Os espaços das visitas são divididos por lençóis na tentativa de garantir privacidade. Nossos filhos precisam ficar 4 horas sentados para não correr risco de invadir a divisão do outro preso, que pode estar tendo visita íntima com a esposa. Os portões do raio ficam trancados sem ninguém no pavilhão, o que deixa os parentes vulneráveis em caso de problemas emergenciais de saúde. Não há água na cela, em um calor que chega a mais de 40 graus”, escreve um preso do presídio II de Presidente Venceslau.

“Era para ser o melhor dia da semana para nós e nossos familiares, mas acaba sendo o mais traumático, humilhante e cansativo”, escreve. “São pessoas honestas que nem vocês, tratadas sem o mínimo de valor e respeito porque são filhos e familiares de presos.”

A leitura das cartas traz uma sensação incômoda de que os vilões estão dentro do Estado

Os trechos acima chegaram em 76 cartas vindas da Penitenciária II de Presidente Venceslau. É a segunda leva de correspondências enviadas por homens encarcerados em São Paulo. A primeira foi de Tremembé I. Familiares me entregaram as correspondências com as denúncias. Como jornalista e pesquisador, acredito que tenho a obrigação de tentar saber o que ocorre do lado de dentro das prisões, informado não apenas pelas fontes oficiais. O Governo de São Paulo gasta em média R$ 1.350 mensais por preso no sistema penitenciário, dinheiro que deveria ajudar a reintegrar os detentos à sociedade. Não é isso o que ocorre. Investimos uma fortuna para piorar as pessoas. As cartas foram escritas entre 25 e 28 de julho. A leitura traz uma sensação incômoda. A de que os vilões estão dentro do Estado. As demandas dos presos são básicas, o mínimo que determinam as leis de Execução Penal – como direito a educação e ao trabalho. Fico imaginando a justificativa das autoridades para não ouvi-las.

Venceslau II tem um regime diferenciado porque recebe integrantes de facções criminosas. Essa é a justificativa da Secretaria de Administração Penitenciária para o tratamento “especial”. Nas cartas, os detentos reclamam do rótulo. Segundo afirmam, a pecha de que fazem parte do Primeiro Comando da Capital (PCC) serve somente para impedir a progressão do regime de muitos que estão lá dentro e não pertencem à facção. De fato, se for considerar a declaração do antigo secretário de segurança, Antônio Ferreira Pinto, de que o PCC são cerca de 30 lideranças encarceradas em Venceslau, os protestos dos presos fazem sentido. O presídio é um dos raros no estado com lotação abaixo de sua capacidade. São 1.280 vagas para 800 presos. No geral, as penitenciárias paulistas têm pelo menos o dobro de sua capacidade física. Isso não impede que o local seja considerado uma das piores unidades do estado de São Paulo.

Em São Paulo, vemos improvisação sem critérios. Pune-se o preso e se desrespeita a lei de Execuções Penais.

O crescimento do PCC nos últimos 20 anos mostra que também é preciso pensar em soluções legais e institucionais para lidar com o crime organizado. Na Itália, o “cárcere duro” (visitas filmadas e feitas com microfones) foi usado durante a Operação Mãos Limpas para enfrentar as máfias. Criminosos que executavam juízes e policiais a mando da máfia, por exemplo, eram considerados diferentes do preso comum. Investigavam-se também aqueles que lavavam dinheiro, que conseguiam financiar campanhas de políticos e assim influenciavam as políticas de Estado. Mas esse debate sequer acontece no Brasil.

Em São Paulo, vemos improvisação sem critérios. Pune-se o preso e se desrespeita a lei de Execuções Penais. Criam-se dificuldades para condenados, humilham-se familiares, impedem-se arbitrariamente as progressões com acusações de que pertencem a facções. Já sabemos o resultado dessas medidas: o crime organizado continua a crescer, na mesma proporção que o Estado se fragiliza.

Segue abaixo a demanda dos presos de Venceslau II. Juntei trechos de diversas correspondências. Todas me pareceram legítimas e por isso são aqui reproduzidas. A maior reclamação diz respeito aos maus-tratos dispensados a familiares dos presos durante as visitas. Creio que esse diálogo é necessário. O objetivo não é proteger os presos. Mas a sociedade.

1) “Visitas trancadas por 4 horas dentro das celas com todos os presos. Homens armados e cachorros assustam as crianças.”

2) “Haveria espaço para as visitas ocorrerem como nas outras penitenciárias, em que as celas são abertas e as visitas ficam no pátio. Uma quadra de futebol fica vazia durante essas visitas.”

3) “A comida costuma vir estragada, constantemente azeda, mal cozida, causando gastrite, úlceras entre outros males.”

4) “Os presos entram com petição com pedido da preservação do direito de estudar e trabalhar. Dizem que as empresas e fábricas não estão interessadas em liberar o maquinário para o trabalho por medo das rebeliões. A última rebelião foi em 2005.”

5) “Insuficiência do exame psicossocial, que determina a progressão da pena. Há somente 30 minutos para a junta criminológica de psicólogo e assistente social efetuar meia dúzia de perguntas e, em cima disso, dar um parecer sobre o futuro de sua vida.”

6) “O banho de sol é de 3 horas por dia e 6 dias por semana. Nas demais prisões são 8 horas.”

7) “Falta de socorro médico, a enfermaria é suja e com profissionais insuficientes. Demora para prestar socorro, para fazer diagnóstico, há falta de escolta para exames externos.”

8) “Falta de professores, mesmo com grandes galpões livres para ensinar. Os locais que já serviram de escola hoje são usados como canis para os cachorros do Grupo de Intervenção Rápida (GIR). Daria para colocar trabalhos, cursos profissionalizantes, teatro etc.”

9) “60% a 70% dos presos têm o direito de obter benefício e progressão de regime. O pedido já chega na mão do juiz e do Ministério Público com o estigma, baseado em boatos ou hipóteses. Isso não pode ocorrer pois a lei determina que aquele que tiver cumprido tempo de prisão e preencher requisitos objetivos e subjetivos tem o direito à progressão. Não podemos ser julgados em cima de conjecturas. Nos tacham como integrantes de facção, sem que possamos nos defender.”

10) “Biblioteca farta, mas se pode escolher apenas um livro por mês. Preciso escolher entre didático e romance.”

11) “Demora mais de 30 dias para chegar carta à casa dos presos e vice-versa.”

12) “Há 1 sabonete e 1 pasta de dente por mês. Quando precisamos mais, tem que mandar diversos pipas.”

Os pedidos das cartas foram enviados à Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo na terça-feira, 5. Quando as respostas forem comunicadas, serão acrescentadas a este texto.

Abaixo, segue um dos clássicos da música popular brasileira: Diário de um Detento, cantado ao vivo pelo Racionais MCs. O coro que acompanha Mano Brown revela o óbvio. Existe um ressentimento real que se forma diante de um Estado injusto e incompetente. O diálogo é necessário para orientar e ajudar a transformação daqueles que querem mudar de vida.


Fonte: Ponte

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ago 7, 2014 | Noticias | 0 Comentários

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