Bolsonaro interdita a participação da sociedade civil nas decisões e na fiscalização da administração pública

Por Irene Maestro, com colaboração de Amanda Rodrigues

No último mês de abril, o Presidente da República assinou, em conjunto com o Ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, o decreto nº 9.759 de 11 de abril de 2019, que extingue e reduz colegiados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, como conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas, e qualquer outra denominação dada ao colegiado que não tenha sido criado por lei.

A medida foi anunciada como parte do “enxugamento” de estruturas burocráticas que desnecessariamente geram gastos aos cofres públicos. Contudo, em nome de uma suposta “otimização” da máquina estatal, tal decreto representa uma impactante afronta a princípios democráticos consolidados em nossa Constituição.

Esses espaços (conselhos, comitês, comissões, grupos etc.) são denominados de colegiados porque todos os seus membros têm iguais poderes e responsabilidades. Através deles é possível a participação da comunidade, por meio de seus representantes no órgão, na construção de políticas públicas de seu interesse. Ou seja, trata-se da institucionalização da presença da sociedade civil na tomada de decisões do poder público e de uma das possíveis formas de exercício da cidadania.

Assim, a sociedade civil pode se fazer representar nas instâncias onde há debates acerca da implementação de políticas públicas, podendo – em tese – intervir para realizar críticas, propor diretrizes, alterações, acompanhar sua fiscalização e ser parte ativa na elaboração de melhorias, a partir de suas experiências, saberes e vivências.

O processo de redemocratização do Brasil impulsionou uma série de questionamentos à necessidade de ampliar a participação social para além do restabelecimento do sistema representativo eleitoral. Dessa maneira, multiplicaram-se iniciativas de ampliação da participação dos cidadãos e cidadãs nas decisões públicas, que visavam construir inovações institucionais para consolidar a democracia em uma sociedade tão marcada pelo autoritarismo – inclusive o clientelismo no acesso a políticas sociais – e a exclusão.

Dessa pressão das organizações da sociedade civil é que surgem os conselhos participativos (em suas variadas formas análogas), com o objetivo de propiciar experiências democráticas de interlocução da população destinatária das políticas públicas – bem como de especialistas, técnicos e estudiosos – com o poder público, com vistas a otimizar a aplicação do dinheiro público, aprimorar o acesso e a qualidade dos serviços públicos e aumentar o controle social sobre as práticas políticas.

Ao anunciar a medida, Jair Bolsonaro enalteceu as extinções que decorrerão do decreto, afirmando que haverá uma “gigantesca economia, desburocratização e redução do poder de entidades aparelhadas politicamente usando nomes bonitos para impor suas vontades, ignorando a lei e atrapalhando propositalmente o desenvolvimento do Brasil, não se importando com as reais necessidades da população”. Por sua vez, Ônix Lorenzoni afirmou que “[os conselhos] traziam pagamentos de diárias, passagens, hotelaria, alimentação, recursos para essas pessoas [os conselheiros] que eram carreados para pessoas que não tinham nenhuma razão para estar aqui, apenas para consumir recursos públicos e aparelhar o Estado brasileiro”.

Trata-se de justificação muito superficial e evidentemente ideológica, ao passo que se nota uma compreensão bastante distorcida da razão –qual seja – de ser desses conselhos, que permitem à sociedade a participação ativa na criação, execução e monitoramento das ações de órgãos públicos e estatais. Há também um significativo tom de aversão à pluralidade de ideias e percepções existentes no seio da diversidade que marca a sociedade civil.

Além disso, é importante destacar que foram poupados desse verdadeiro “revogaço” grupos constituídos no governo Bolsonaro, como o CNS (Conselho Nacional de Saúde), o CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), o Conselho Curador do FGTS e o CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais).

Assim, temos a impressão de que objetiva-se emudecer vozes que possam criticar os rumos e políticas desenvolvidos pelo presente governo, o que representa um retrocesso em termos de fortalecimento da democracia na medida em que ataca instrumentos elementares de participação da sociedade, denotando seu viés autoritário.

A partir de julho, centenas de conselhos que contavam com a participação da sociedade civil, como o Conade (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência), serão extintos e reduzidos a pouco menos de 50. A própria Política Nacional de Participação Social também deixará de existir. Todos os órgãos incluídos no decreto e que serão atingidos têm 60 dias para justificar sua existência.

Com a extinção dos conselhos, uma série de políticas públicas será desmontada, pois muitos deles tinham atribuições essenciais para sua execução, como a alocação de recursos para sua implementação e a própria definição da política, deixando obscura sua continuidade. Há muitas críticas por parte de quem acredita que isso irá diminuir a transparência e o controle social sobre o governo, na medida em que reduz a participação da sociedade civil nos processos decisórios do Poder Executivo.

Segundo Fátima Borghi, Procuradora Regional da República da 3ª Região, o decreto do presidente Jair Bolsonaro é inconstitucional, pois viola princípio protegido pela Constituição Federal – de participação e controle social nas políticas públicas -, afirmando que “no regime republicano, a participação social é um fundamento da cidadania”. Um documento está sendo elaborado para ser remetido à Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, com vistas a embasar uma eventual Ação Direta de Inconstitucionalidade. A revogação indiscriminada desses organismos configura flagrante irresponsabilidade segundo parlamentares que também se posicionaram contra a medida.

O Ministério Público Federal também emitiu nota técnica apontando que, em que pese a “louvável preocupação” com o princípio da eficiência, “fruto de uma visão responsável da gestão da coisa pública”, o Decreto faz “sobressair uma aparente intenção governamental de se diminuir ou dificultar a participação popular direta nas discussões e deliberações que geram a atuação estatal, o que seria criticável logo de início e por definição”.

Ainda, destacam que deve-se privilegiar a participação social como direito do cidadão, permitindo “o equilíbrio entre mecanismos da democracia representativa e direta, a cidadania ativa e a transparência”. A ausência da sociedade civil, com suas contribuições a partir de distintas realidades vividas (especialmente em um país com nossas dimensões e diversidades), com a iluminação de desafios múltiplos a serem enfrentados, bem como com seu exercício do controle social na formulação e fiscalização das políticas públicas, faz com que se abram brechas para a adoção de programas, metas e indicadores subjetivos e para um alto grau de imprecisão.

Isso significa que a definição do destino dos orçamentos será mais flexível, e haverá uma “margem maior para o gestor público no momento de decidir onde empenhar os recursos públicos, bastando, para isso, uma certa dose de criatividade para encaixar suas intenções nos termos genéricos que passarão a integrar o orçamento”.

O Decreto nº 9.759/2019, portanto, representa um inaceitável retrocesso, na medida em que, ao invés de aprofundar, consolidar e fortalecer mecanismos de materialização do poder que emana do povo, faz exatamente o contrário.

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maio 23, 2019 | Artigos, Noticias | 1 Comentário

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