Coronavírus e encarceramento: reflexões sobre o primeiro ano da pandemia no sistema prisional

A pandemia no Brasil

Em fevereiro de 2020 foram notificados os primeiros casos de COVID-19 no Brasil, e em meados de março os municípios e estados deram início a medidas de isolamento social. Um ano depois, o país enfrentava seu pior momento na pandemia, se tornando o epicentro mundial

Os meses de março e abril de 2021 marcaram a fase mais crítica da pandemia no país até então, registrando recordes diários de vítimas e de novos casos, somado ao colapso do sistema de saúde. 

Diversos países passaram por momentos críticos durante a pandemia ao longo de 2020, mas o caso do Brasil chama atenção pois a piora da pandemia ocorre justamente num momento no qual já há vacinação disponível e diversos estudos sobre quais as medidas mais efetivas para conter a propagação do vírus. 

 Assim, o fracasso no combate aos vírus no Brasil e a situação alarmante enfrentada pelo país atualmente se deram muito mais em função de escolhas políticas equivocadas do que por questões estritamente epidemiológicas. 

Além da crise sanitária, o contexto de pandemia acarreta ou intensifica uma série de problemas sociais e econômicos, agravando a situação de vulnerabilidade de diversos grupos, dentre eles mulheres migrantes em conflito com a lei, público atendido pelo ITTC.

É preciso pontuar que, apesar da pandemia ser um problema que atinge toda a população, ela não atinge todos da mesma forma. Sendo assim, iniciativas de isolamento e distanciamento social devem levar em consideração as desigualdades sociais e econômicas existentes, de modo a permitir que grupos mais vulneráveis também consigam seguir as recomendações dos órgãos de saúde. 

Quando pensamos na população privada de liberdade, por exemplo, as medidas de distanciamento e isolamento são inviáveis diante da superlotação e das condições insalubres do sistema penitenciário brasileiro. Até mesmo medidas simples como lavagem das mãos se tornam difíceis levando em consideração a precariedade das unidades prisionais. 

COVID-19 no sistema penitenciário

Estima-se que, considerando as condições das prisões brasileiras, uma pessoa privada de liberdade infectada pode contagiar até 10 pessoas, enquanto entre a população livre a estimativa é de que um caso contamine de 2 a 3 pessoas (SANCHES et al., 2020). Apesar dos dados preocupantes, discussões sobre os riscos do coronavírus nas prisões ainda ocupam pouco espaço no debate público, de acordo com Sanches et al (2020). 

Considerando as condições violadoras e insalubres do cárcere, que o tornam um ambiente propício para a proliferação de doenças muito antes da pandemia –  o que pode ser exemplificado pelos altos índices de tuberculose nas prisões brasileiras  –  o mais adequado seria a adoção de medidas desencarceradoras para conter a propagação do novo coronavírus. 

Diante do cenário pandêmico, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Recomendação nº62/2020, contendo medidas que os tribunais e magistrados poderiam adotar a fim de conter a contaminação por coronavírus no sistema penitenciário e socioeducativo. 

Dentre as recomendações voltadas ao sistema penitenciário, destacam-se a reavaliação de prisões provisórias, priorizando gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por crianças de até 12 anos, pessoas idosas, indígenas, portadoras de deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco, além de pessoas privadas de liberdade em estabelecimentos com ocupação superior à capacidade ou que não disponham de equipe de saúde.

 O documento também recomenda a “concessão de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto, nos termos das diretrizes fixadas pela Súmula Vinculante no 56 do Supremo Tribunal Federal”, também priorizando os grupos supracitados. 

Na prática, a recomendação do CNJ surtiu pouco efeito, visto que o sistema penitenciário continuou superlotado e os casos de COVID-19 nos estabelecimentos penais continuaram crescendo

No primeiro semestre de 2020, segundo o levantamento do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN), o Brasil tinha 702.069 pessoas presas, cerca de 6,7% a menos em relação ao mesmo período em 2019. Entretanto, o sistema penitenciário continuou com uma ocupação de 151,9%, mantendo a inviabilidade de quaisquer medidas efetivas de isolamento e distanciamento social.

Mesmo com a subnotificação de casos, em novembro de 2020 o Brasil era o segundo país com mais casos de coronavírus entre a população privada de liberdade, registrando mais de 35 mil casos

A violação de direitos fundamentais de pessoas encarceradas no Brasil, dentre eles o (não) acesso à saúde, é um problema muito anterior à pandemia, que agravou ainda mais a situação. Questões como a subnotificação de casos e óbitos, assim como a escassez e fragilidade de dados sobre o sistema penitenciário dificultam um monitoramento em tempo real sobre os impactos da pandemia na população privada de liberdade. 

Apesar das dificuldades para levantar informações consistentes sobre o tema, a seguir apresentamos alguns dados sobre os casos de coronavírus notificados nas prisões paulistas e algumas comparações entre os indicadores de 2020 e 2019, a fim de identificar se com a pandemia houve uma redução do encarceramento – especialmente entre a população migrante – e se houve um aumento no número de óbitos dentro do sistema prisional.  

Pontuamos que a ideia inicial era realizar este levantamento não só com o estado de São Paulo, mas também com os estados que concentram um número considerável de pessoas migrantes privadas de liberdade segundo os dados disponibilizados pelo INFOPEN, sendo eles Amazonas, Mato Grosso do Sul, Paraná e Roraima e São Paulo. Para isso, foram solicitadas algumas informações, via Lei de Acesso à Informação (LAI), relativas ao número de migrantes presos no estado em 2019 e 2020, número de casos de COVID-19 entre a população privada de liberdade (migrantes e brasileiros) e número de óbitos no cárcere em 2019 e 2020. 

Entretanto, com exceção de São Paulo, muitos estados não forneceram as informações requisitadas ou o fizeram de forma incompleta. Alguns estados alegaram não ter a informação solicitada, outros alegaram migração de sistema e por isso a indisponibilidade de dados no momento, e outros sequer responderam aos pedidos e não apresentaram quaisquer justificativas. Por conta da incompletude dos dados, o que impediria uma comparação adequada, a análise a seguir terá como foco o estado de São Paulo. 

Apesar das dificuldades para obter dados via LAI, foi possível obter informações quanto ao número de migrantes presos nos estados supracitados no 1º semestre de 2019 e 2020 disponíveis no SISDEPEN. Com isso, é possível observar se a pandemia acarretou uma redução no encarceramento de migrantes ou não.

A partir das informações do gráfico nota-se que em todos os estados, com exceção de Roraima, houve uma redução no número de homens e mulheres migrantes privados de liberdade em 2020 em relação à 2019. A redução mais expressiva ocorreu no estado do Mato Grosso do Sul, seguido pelo Amazonas. 

A partir dos dados disponíveis não é possível saber se essa redução ocorreu por conta do fechamento das fronteiras, o que dificultou os deslocamentos de migrantes que costumam ser presos por exercerem o transporte de drogas na função de mulas, e como decorrência uma redução na prisão de migrantes, ou se a diminuição foi produto de medidas desencarceradoras adotadas pelos estados seguindo as recomendações do CNJ. 

 Todavia, considerando que o número total de homens e mulheres presos no estado, independente da nacionalidade, não diminuiu substancialmente em 2020 em relação ao ano anterior, tudo indica que a primeira hipótese seja a mais adequada para justificar a redução de pessoas migrantes presas. 

Chama atenção também o aumento expressivo no número de migrantes em conflito com a lei no estado de Roraima, principalmente de venezuelanos. Diante da crise enfrentada pela Venezuela nos últimos anos, o Brasil tem recebido muitos venezuelanos, e considerando a condição de vulnerabilidade socioeconômica dessas pessoas, não é incomum que muitas recorram a atividades ilícitas, como o comércio de drogas, como forma de obter renda. 

Apesar da redução no número de migrantes em 2020, São Paulo ainda concentra o maior número de pessoas migrantes presas no Brasil, tanto de homens quanto de mulheres. De 2020 para 2019 houve uma redução de 25% no número de homens e mulheres migrantes privados de liberdade. 

O estado também concentra a maior parcela dos casos de COVID-19 registrados entre pessoas presas no Brasil até dezembro de 2020. Dos 41.971 casos notificados entre este grupo até então, São Paulo abarcava cerca de 27%, conforme aponta relatório do CNJ.

Por meio de LAI solicitamos o número de casos notificados entre pessoas privadas de liberdade em São Paulo até dezembro de 2020.  

Casos de covid-19 registrados entre a população privada de liberdade em SP até dezembro de 2020
Homens (total) 11.303
Mulheres (total) 166
Homens Migrantes 3
Mulheres Migrantes 3
Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP/SP)

 

Apesar do número de casos entre pessoas migrantes parecer ínfimo em comparação à população total privada de liberdade, é importante pontuar que a subnotificação é um problema recorrente, fazendo com que o número de casos de COVID-19 na prisão possa ser ainda mais expressivo. 

Em 2020 o estado de São Paulo tinha aproximadamente 218.900 pessoas presas, e até dezembro do mesmo ano foram realizados somente 84.347 testes, um valor pequeno quando lembramos que para rastrear casos e conter a propagação do vírus é necessário um monitoramento constante. No cenário nacional a subnotificação de casos de coronavírus nas prisões é ainda mais preocupante, visto que o país, até dezembro de 2020, havia realizado somente 171.293 testes entre as mais de 700.000 pessoas presas.   Além disso, os dados não abarcam o primeiro quadrimestre de 2021, quando o Brasil enfrentou o pior momento da pandemia até então, durante os meses de março e abril.

Em relação ao número de óbitos entre pessoas presas no estado, chama atenção a quantidade exorbitante de óbitos que ocorrem dentro do sistema prisional paulista, independentemente do contexto de pandemia. 

Em 2019, foram registrados 468 óbitos entre pessoas presas no estado de São Paulo, sendo 95,5% entre os homens e 4,5% entre as mulheres. Por sua vez, em 2020 foram registrados 462 óbitos no sistema prisional paulista. Em relação à população migrante, foram registrados 4 óbitos em 2019 e 3 em 2020, todos entre a população masculina e nenhum registro de morte por conta do coronavírus. 

Em dois anos, somente em São Paulo, foram quase 1.000 pessoas que perderam suas vidas enquanto estavam sob tutela do Estado. Não se sabe quantas famílias de fato foram informadas sobre os falecimentos, ou quanto tempo levou para que elas fossem informadas, mas ocasionalmente são publicadas matérias que retratam o descaso com a vida de pessoas privadas de liberdade e de seus familiares, que não conseguem se despedir de seus entes queridos. No caso de pessoas migrantes que falecem no sistema prisional a situação é ainda mais delicada, visto que as famílias às vezes não dispõem dos recursos necessários para o translado do corpo e nem sempre podem contar com a ajuda dos consulados e embaixadas.

Nº de óbitos entre população privada de liberdade em SP
  2019 2020
Homens (total) 447 462*
Mulheres (total) 21
Homens Migrantes 4 3
Mulheres Migrantes 0 0
*Em resposta ao pedido de LAI, o órgão responsável informou não ter esses dados divididos por gênero para o ano de 2020
Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP/SP)

 

Ao contrário do que imaginávamos quando solicitamos as informações, não houve um aumento expressivo no número de óbitos no sistema prisional paulista em 2020 em decorrência da pandemia, mas sim a manutenção de índices preocupantes. O que se nota a partir dos dados é que o coronavírus representa mais um risco para a população privada de liberdade, mas que o direito à saúde e o próprio direito à vida estão em constante ameaça dentro do cárcere.  

Conforme o relatório do CNJ citado anteriormente, até dezembro de 2020 foram registrados 35 óbitos por conta de COVID-19 entre pessoas presas no estado de São Paulo. Assim, o coronavírus foi responsável por aproximadamente 7,58% dos óbitos contabilizados em 2020. Além das mortes causadas pelo coronavírus, chama atenção a frequência de óbitos decorrentes de problemas tratáveis, em especial pneumonia e  tuberculose. Há ainda dezenas de casos de suicídio, indicando a importância do acompanhamento não só em relação à saúde física, mas também mental de pessoas privadas de liberdade. 

Assim como as mortes por coronavírus não devem ser tratadas como meras fatalidades, visto que muitas delas poderiam ter sido evitadas caso houvesse uma condução adequada da pandemia por parte do governo federal, é preciso questionar as mortes que ocorrem dentro do sistema prisional e se elas também não poderiam ser evitadas.

 Em ocasião anterior já pontuamos como o cárcere pode agravar e/ou levar ao desenvolvimento de novos problemas de saúde. Considerando a precariedade das unidades prisionais e a incapacidade do estado brasileiro em garantir direitos essenciais à população privada de liberdade, medidas desencarceradoras tornam-se ainda mais urgentes, não só no contexto de pandemia. 

 

Por Gabriela Menezes e Mainara Thaís Guimarães

 

Referência

SANCHEZ, Alexandra et al. COVID-19 nas prisões: um desafio impossível para a saúde pública?  Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n.5, 2020.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020000500502&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2020.

 

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jun 1, 2021 | Artigos, Destaques | 0 Comentários

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