Portugal após 17 anos de descriminalização do uso de drogas

O cenário e os desafios do primeiro país da Europa que adotou a descriminalização do uso de drogas

Por Letícia Vieira

Portugal se destacou no cenário internacional pela mudança que operou em sua política de drogas. Em 2001, o país adotou a descriminalização do uso de drogas e quebrou um paradigma global. A experiência tirou da esfera criminal os casos de pessoas usuárias de drogas que, em vez de serem julgadas por um juiz ou juíza, são encaminhadas para organizações sociais.

A medida surgiu com enfoque no tratamento da questão das drogas sob a perspectiva da saúde pública. Esse é um dos principais objetivos da lei 30/2000, que não só descriminaliza o uso, como combina a ação a programas de redução de danos.

Nesse sentido, a experiência de Portugal se torna um caso único. Quando a pessoa usuária é detida com uma quantidade de drogas que não exceda o consumo permitido durante o período de dez dias, ela é encaminhada para uma organização social especializada em tratamento de dependentes químicos. Lá ela pode optar pelo tratamento da dependência ou o pagamento de uma multa. Atualmente, o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) é um dos principais responsáveis por lidar com os casos.

Segundo João Goulão, diretor geral do SICAD, Portugal adotou uma postura quanto à política de drogas que combate o uso problemático, e não o paciente. Apesar disso, o uso de drogas continua ilegal. O principal diferencial é que mesmo a instância econômica, que seria o pagamento da multa, também é decidido pelas organizações sociais.

Leia também “ITTC Explica: Além da legalização, quais são as possíveis políticas de drogas?”

Mudança de paradigma

Antes da descriminalização, Portugal apresentava percentuais elevados de uso de drogas na população e casos de overdose. As mudanças no consumo não foram notáveis, mas os casos de overdose diminuíram. Em 2008 foram registradas 94 mortes por overdose, enquanto em 2016 o número de mortes caiu para 27, segundo dados do SICAD.

No cenário do sistema prisional, após a descriminalização houve uma redução em pequenos furtos e também de pessoas usuárias com HIV, de acordo com o relatório produzido pela Open Society.

O infográfico Política de drogas e encarceramento: Um panorama América-Europa, lançado pelo ITTC, aponta que entre 2000 e 2015 o encarceramento teve aumento de 9%, número que se mostra positivo se comparado ao período de 1990 e 2000, em que houve um crescimento de 43%. Além disso, o encarceramento feminino diminuiu 32% de 2000 a 2015.

O outro lado

Para Lucia Sestokas, pesquisadora e colaboradora do ITTC, um dos pontos interessantes a se pensar é o processo de flexibilização da política de drogas, que pode envolver a descriminalização e a despenalização do consumo de drogas. No caso da Holanda e de alguns estados dos EUA, esse processo surgiu motivado por questões econômicas, já no caso de Portugal, o viés adotado foi o do uso.

Sestokas também cita a importância de se observar quais são os impactos gerados nesses processos. “É interessante, de fato, tirar o uso do rol da justiça criminal, mas o que é questionável é, primeiro, se tirar desse patamar muda a lógica do sistema, se continuam sendo as mesmas pessoas apreendidas. Segundo, é esse jogo de saberes. Então, tira-se do saber da justiça e leva-se para o saber médico, mas como essas pessoas são tratadas ali? Por exemplo, o que é considerado uso abusivo é definido por esse saber, não é a pessoa que vai definir”, explica Lucia.

“O uso está descriminalizado, mas todo o entorno desse uso está criminalizado. Então se coloca aquela pessoa em uma situação de vulnerabilidade, que tem graus em recorte de classe, de raça, de gênero”, Lucia Sestokas.

Outra questão apontada pela pesquisadora é o fato de os critérios objetivos se tornarem um mecanismo para encarcerar mais pessoas. Esse fator também é amplamente discutido no Brasil. O porte de drogas para consumo pessoal é despenalizado, mas mesmo sem o estabelecimento de critérios objetivos, a distinção sobre quem é a pessoa usuária e quem é a pessoa traficante fica a cargo de instituições como a Polícia Militar.

Leia também “ITTC Explica: Como funcionam os critérios objetivos para distinguir a pessoa usuária de traficante de drogas”?

“O maior problema em relação aos critérios é que não muda a lógica de quem a polícia está abordando. Então, se a polícia aborda as mesmas pessoas, ela vai ter um aval a mais pra continuar prendendo essas pessoas. Ele não muda a lógica de operação desse sistema, ele só vai dar um grau de legitimação dessas prisões”, afirma Lucia.

Num panorama geral, Lucia Sestokas aponta que os próximos passos para a análise da experiência de Portugal com a descriminalização do uso de drogas é o estudo dos impactos da medida em campos que não só o do consumo. Ponto também citado por João Goulão na reportagem do El País. “Não tenho nenhuma resistência mental a novas medidas no sentido da liberação, mas não devemos dar um salto adiante apenas para ser os mais modernos”, declara Goulão.

 

 

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jun 15, 2018 | Noticias | 0 Comentários

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