#MulhereSemPrisão: revista vexatória e audiências de custódia

Dando continuidade à série MulhereSemPrisão: Audiências de Custódia, este terceiro texto propõe debater um dos mais cruéis tipos de violência suportado por mulheres e perpetrado pelo Estado: a revista íntima vexatória.

O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) tem lutado pelo fim dessa prática desde sua fundação, em 1997, seja por meio do Grupo de Estudos e Trabalho – GET Mulheres Encarceradas, seja pela atuação na campanha da Rede Justiça Criminal pelo fim da revista vexatória.

A prática, considerada violência sexual e tortura por organismos internacionais¹ e vedada por lei estadual, reproduz uma lógica de humilhação, violência e discricionariedade. Contudo, sua realização permanece mesmo em estados como São Paulo, onde já foram implementados scanners corporais em quase todas as unidades prisionais.

Em acompanhamentos de audiências de custódia realizadas em fóruns criminais da região metropolitana de São Paulo, a equipe do programa Justiça Sem Muros, do ITTC, teve acesso a relatos de abordagens e apreensões que resultaram de procedimentos caracterizados como revistas vexatórias.

Entre dezembro de 2017 e abril de 2018, foram registrados nove casos², número esse que pode ser maior, considerando que o universo da pesquisa foi restrito às audiências que a equipe acompanhou. Além disso, a violência de gênero, costumeiramente relativizada em razão da opressão enfrentada pelas mulheres na sociedade, muitas vezes não é identificada como tal pelas vítimas. Dos casos citados anteriormente, oito eram mães, uma estava em situação de rua, e em dois casos foram relatadas outras formas de violência física.

Quatro das situações relatadas resultaram de inspeções praticadas em unidades prisionais após o uso do scanner corporal, e cinco de “buscas pessoais” em abordagens policiais – dentre as quais somente em duas constou dos autos da prisão em flagrante a ressalva de que a revista teria sido efetuada por agente feminina. Importante pontuar também que em dois dos casos a revista foi realizada na região da Cracolândia por agentes da Guarda Civil Metropolitana, cuja competência para tal é constitucionalmente contestada, e será por nós analisada em um próximo texto.

Esse tipo de conduta extrapola a já arbitrária previsão do artigo 240, §2º do Código de Processo Penal, segundo o qual poderá ser efetuada a denominada “busca pessoal” por agentes policiais quando “houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. Como a prática demonstra, tais “buscas” costumam ser baseadas em construções sociais e juízos de valor dos próprios agentes.

O Código de Processo Penal prevê, em seu artigo 249, que a busca pessoal em mulher será feita por outra mulher, “se não importar retardamento ou prejuízo da diligência” – ressalva que muitas vezes fundamenta a realização de revistas por homens, de maneira a potencializar a violência e a humilhação da abordagem. No entanto, ainda que efetuada por outra mulher, o excesso na conduta não é necessariamente afastado.

Nesse sentido, argumentos como “houve revista íntima vexatória para averiguação de drogas no interior da vagina da indiciada” ou “foi realizada revista vexatória em sala privada, tendo que se ajoelhar nua em frente aos seus filhos e no presídio havia scanner” eram utilizados pela defesa – assumida, em todos os casos acompanhados, pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo – em pedidos de relaxamento das prisões em flagrante. Dos nove casos identificados, em sete houve o pedido de relaxamento pela defesa com base na revista vexatória, em que se argumentou pela ilicitude da prova, sendo que em apenas um desses casos esse mesmo pedido de relaxamento foi feito pelo Ministério Público.

Contudo, nenhum desses casos foi sequer encaminhado pelos juízes condutores das audiências à averiguação cabível – evidenciando a naturalização da revista vexatória como instrumento de investigação criminal, bem como a desconsideração da violência por ela representada. Soma-se, assim, à violência sofrida em razão da revista vexatória, a violência institucional, quando atores participantes das audiências de custódia negligenciam ou relativizam a violência sofrida pelas mulheres.

Assim, para além das dificuldades de se identificar a revista vexatória, o encaminhamento – tanto no tocante à investigação da violência perpetrada quanto aos pedidos de relaxamento – raramente ocorre. Ademais, observa-se que a prática não fica adstrita apenas ao contexto prisional, mas é ampliada e verificada também nas abordagens policiais.

Dessa forma, a revista vexatória, apesar de passível de enquadramento no crime de abuso de autoridade, constitui uma das principais formas de violência às quais as mulheres são submetidas no momento da abordagem policial, e, conforme a tradicional retórica da violência de gênero, acaba sendo atenuada nos discursos dos atores do sistema de justiça criminal, e até mesmo pelas vítimas, configurando invisibilidade perpetuada no decorrer do procedimento penal como um todo.

¹ CtIDH. Caso Penal Miguel Castro Castro vs. Peru, 2006; CtIDH. Medida Provisória do Complexo Curado, Resolução de 22 de maio de 2014.

² A contabilização dos casos deu-se da seguinte forma: em sete casos a defesa alegou a ocorrência da revista vexatória; em dois casos a configuração da prática se deu pela interpretação das pesquisadoras a partir do relatado em audiência; e em três casos ela apareceu na narrativa da custodiada, após provocação da defesa.

Imagem: Agência CNJ

Saiba mais:
20 anos de luta: pelo fim da revista vexatória
Nota do ITTC Pelo fim da revista vexatória
Boletim da Rede Justiça Criminal: Discriminação de Gênero no Sistema Penal
Tira a roupa, agacha e vai – A política de drogas é uma questão de mulheres

Confira os primeiros artigos da série:
#MulhereSemPrisao: Audiências de custódia
#MulhereSemPrisão: reflexões sobre identidades de gênero nas audiências de custódia

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out 16, 2018 | Artigos, Noticias | 1 Comentário

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