Vigilância e punitivismo nos tempos da alta tecnologia

Como algoritmos e sistemas tecnológicos têm ampliado os mecanismos de punição e encarceramento em massa

Por Letícia Vieira

A tendência futurista e distópica apresentada em alguns episódios da série “Black mirror” ganhou espaço e foi alvo de diversas opiniões no meio virtual. Fazer um paralelo com a realidade atual não é uma tarefa difícil. No artigo “Black Mirror: a construção do criminoso no episódio ‘engenharia reversa’”, Wagner Francesco traça, com base na criminologia crítica, como discursos de ódio e extermínio de grupos sociais vulnerabilizados são viabilizados pelo Estado, principalmente com o uso de aparatos tecnológicos.

Longe das telas e da ficção, a tecnologia ganhou novo espaço para debate com o caso do Facebook e a Cambridge Analytica. O vazamento de dados trouxe a preocupação com as normas de privacidade e o controle que temos sobre como nossas informações são compartilhadas. Para além das liberdades e direitos individuais, a discussão se expandiu e questionou como a tecnologia tem possibilitado a hipervigilância.

No começo de 2017, como parte da campanha da Agenda Municipal para Justiça Criminal, o ITTC publicou semanalmente na página do facebook pequenas análises sobre ações municipais. Uma das publicações comentava o projeto CityCamera, proposto pelo então prefeito da cidade de São Paulo, João Dória (PSBD). O projeto propunha a integração das câmeras de estabelecimentos privados com o sistema de segurança pública para tornar São Paulo a cidade mais monitorada do país.

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Outra proposta que tinha o intuito de instaurar a hipervigilância foi o projeto Dronepol, também de autoria de João Dória, que trazia o uso de drones pela Guarda Civil Municipal para auxiliar na investigação e na identificação de “criminosos”. Segundo a análise do ITTC, práticas como essa, por parte da gestão municipal, potencializam a vigilância e perpetuam o controle de regiões periféricas.

O ampliamento do sistema de vigilância se torna mais um meio de também expandir a malha penal, uma vez que vai legitimar a atuação policial, por exemplo, de modo a atuar sempre em determinados territórios e gerar a manutenção do encarceramento em massa de determinadas pessoas apenas, uma vez que o foco da vigilância é sempre o mesmo.

Outro exemplo de como a tecnologia tem ampliado o poder punitivista é a monitoração eletrônica, que expande o controle penal para além dos muros da prisão.

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Tecnologia e sistemas de vigilância: potencializando desigualdades

A tendência dos algoritmos e de outros tipos de tecnologia para acentuar as desigualdades sociais foi um alerta feito por Cathy O’Neil, matemática e autora do livro Armas de destruição matemática. Na obra, a autora comenta a experiência realizada pela polícia da cidade de Reading, localizada no estado da Pensilvânia (EUA), que utilizou um sistema de predição de crimes nomeado PredPol. O sistema utiliza-se de big data, ou seja, um grande volume de dados que são analisados conforme o valor, o volume, a variedade e a velocidade, e que são geralmente utilizados por empresas para dispor de perfis detalhados de consumidores, consumidoras e possíveis públicos-alvo.

Na experiência realizada pela polícia de Reading, o sistema traz uma análise dos locais da cidade onde há maior número de ocorrências e prisões em flagrantes, e por fim gera um relatório com locais onde há maior predisposição para ocorrência de crimes. Assim, a estratégia policial concentra seus agentes nessas localidades e prende mais pessoas, em sua maioria negras e hispânicas, por crimes de menor potencial ofensivo.

“Continuamos prendendo negros por coisas pelas quais não prendemos brancos, mas agora já não o dizemos abertamente e disfarçamos de ciência”, declara Cathy em entrevista para o jornal El País.

Mesmo que pareça ser novidade usar a ciência para legitimar determinados discursos e ações, Wagner Francesco, munido da teoria da criminologia crítica, mostra em seu texto que esses atos são questões estruturais muito anteriores à era digital. Ele afirma que o surgimento de novas ferramentas ajuda a manter as desigualdades sociais, raciais e de gênero que se reinventam com base nessas novas tecnologias.

Cathy ainda afirma que essa potencialização das desigualdades só ocorre porque esses sistemas são criados por um grupo composto, majoritariamente, por pessoas brancas e ricas. “O que é preciso é diversidade nas equipes que escrevem os algoritmos para que incluam pessoas que pensem nas violações dos direitos humanos e na forma como esses códigos vão afetar a sociedade”, conclui O’Neil.

Mesmo com incertezas de como a tecnologia vai se desenvolver dentro do campo de segurança pública, o ITTC acredita que a discussão sobre o assunto é essencial. Assim como a discussão sobre os mecanismos do sistema de justiça que perpetuam as estruturas sociais que baseiam o encarceramento em massa, os mecanismos que aprimoram e propiciam esse sistema devem ser postos em pauta na sociedade, por meio de um diálogo público, que crie cada vez mais espaços para o protagonismo das pessoas que são de fato afetadas por essa realidade.

 

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jul 5, 2018 | Noticias | 0 Comentários

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