A virtualização das audiências de custódia e a invisibilização das violências

A audiência de custódia é o momento no qual  pessoas presas em flagrante devem ser apresentadas pela primeira vez a um juiz ou juíza no prazo de até 24 horas, quando este/a irá decidir sobre a continuidade ou não da prisão. Prevista em pactos internacionais que o Brasil é signatário como, a Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH (também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica) e Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, foi inaugurada no país apenas em 2015, quando então passou a fazer parte do nosso Código de Processo Penal, sendo também validada pelo Supremo Tribunal Federal. 

Com o objetivo de verificar a legalidade da abordagem policial e existência de maus tratos ou de tortura na abordagem policial, além de avaliar a necessidade de manutenção da prisão preventiva, as audiências de custódia, no caso das mulheres, recebe especial atenção, uma vez que também é o momento de levantar informações sobre gestação e maternidade, relevantes ao andamento processual e para a garantia de seus direitos. 

Diante da justificativa da impossibilidade de realização das audiências devido ao período de restrição sanitária que surgiu com o advento da pandemia do Covid-19 em 2020, houve o fortalecimento do discurso de implementação das audiências de custódia por videoconferência. 

Assim, em 30 de julho de 2020, o CNJ publicou o texto da Resolução nº 329, que, em seu artigo 19, vedava a realização da audiência de custódia por videoconferência. Porém, em 26 de novembro de 2020, alterou a redação deste artigo, através da Resolução n° 357, e passou a permitir a audiência de custódia por videoconferência durante a pandemia, seguindo alguns requisitos como, em tese, se valer da virtualização apenas de forma subsidiária quando não houvesse a possibilidade de realização de forma presencial nas primeiras 24 horas da prisão; bem como, a garantia da entrevista prévia e reservada entre a pessoa presa e advogado/a ou defensor/a público, tanto presencialmente quanto por videoconferência, telefone ou qualquer outro meio de comunicação¹. Acontece que a excepcionalidade tende a virar regra. 

Alguns estados têm implementado essas audiências de maneira virtual, cada um com suas peculiaridades, desafios e obstáculos a serem enfrentados, tais como São Paulo, Pernambuco, Ceará, Minas Gerais, Bahia, Santa Catarina, entre outros.

Nesse contexto, o que mais chama a atenção é a realização das audiências de custódia de forma virtual dentro da própria delegacia. Local, na maioria das vezes, inapropriado para a realização do rito processual, seja porque as pessoas que acabaram de ser presas podem estar facilmente expostas aos seus agressores ou porque podem não ter a devida privacidade para relatar os eventuais excessos e abusos sofridos na abordagem policial.

Os desafios das audiências de custódia presenciais já são enormes, porém a realização desse procedimento de forma virtual tende a dificultar ainda mais que as pessoas presas relatem violências e que estas sejam vistas pelo Juiz ou Juíza e demais atores jurídicos. Não somente isso, veja-se que o impedimento de um primeiro contato presencial pode ir além da magistrada ou magistrado, podendo alcançar também a defesa da pessoa acusada, além dos eventuais problemas com tecnologia ou conexão a que todos estão sujeitos.

Isto é, não haveria a apresentação presencial propriamente dita para avaliação pelo juiz ou juíza da existência de maus-tratos ou tortura. A audiência de custódia permite à pessoa que acabou de ser presa reivindicar seus direitos e garantias individuais, com vistas a restringir possíveis abusos no momento da prisão. Portanto, a realização das audiências de custódia via videoconferência tende a diluir a essência do procedimento.

Destacam-se, entre outras razões, as práticas de tortura e violência cometidas pelas autoridades policiais que não deixam marcas nas vítimas. Como indicam estudos realizados pelo ITTC, em especial o relatório MulhereSemPrisão: Enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal (2019), essas práticas são, na maioria das vezes invisibilizadas pelos magistrados e magistradas, mesmo com a existência e incorporação do Protocolo de Istambul², que aponta para a não necessidade de marcas visíveis para se verificar a prática de tortura.

Aponta-se que, mesmo realizadas presencialmente, as audiências de custódia apresentam fragilidades. Durante a pesquisa do ITTC, mulheres relataram que sofreram também ameaças, por exemplo, incitar a perda do poder familiar e questionamentos acerca do exercício de sua maternidade, além de outros tipos de violências, como agressão verbal/psicológica e a revista vexatória.

Conforme dados obtidos no MulhereSemPrisão, 18,77% das mulheres que afirmaram ter sofrido algum tipo de violência, destas, 72,5% eram negras. Ainda, quando perguntadas, 44,4% das mulheres transexuais ou travestis também relataram violência. Ou seja, a seletividade do sistema de justiça criminal demonstra o reforço do punitivismo sob corpos vulnerabilizados pelas desigualdades étnico-raciais brasileiras. Nenhum dos casos de violência psicológica/verbal e de revista vexatória tiveram algum encaminhamento nessa questão ou foram considerados como prova ilegal para a prisão em flagrante. 

Dentre os 40 casos de violência física das audiências de custódia assistidas pelas pesquisadoras do ITTC, apenas 12 tiveram algum tipo de encaminhamento. Isto significa que 70% dos relatos de violência não tiveram qualquer tipo de andamento.

Muitas autoridades judiciais, pelo simples fato de não verem marcas ou hematomas no corpo da pessoa apresentada, entendem que não houve abuso ou violência na abordagem policial. Portanto, acabam por ignorar possíveis ameaças, tortura emocional e psicológica, revista vexatória, entre outras. 

Com a mudança para a realização de tal rito processual para a videoconferência, os abusos e as práticas de violência e tortura de todas as formas ficam ainda mais invisibilizadas pelas autoridades judiciais e às condutas das autoridades policiais cada vez mais legitimadas, negando e impossibilitando, portanto, o exercício dos direitos fundamentais dos indivíduos que foram presos.

De acordo com o Manual para a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, elaborado pela ONU, crer que o argumento de que “é melhor ter audiências de custódia de forma virtual do que não ter de forma alguma” deve ser levado como uma máxima no cenário pandêmico atual é uma visão equivocada, inválida, e que pode trazer imagem desleal e incompleta da realidade. Assim, arrisca-se a colocar em perigo os indivíduos reclusos que podem vir a ficar sem visitas, de qualquer natureza, por prazo indeterminado, tal como, fornecer álibi para os autores de torturas, abusos e maus tratos, que podem rodear, impunemente e com frequência, as vítimas de seus próprios excessos.  

Cumpre salientar que a retomada das audiências de custódia de forma presencial já se mostra um cenário viável. E, inclusive, já é possível destacar boas práticas que foram adotadas pelos 9 estados brasileiros que retornaram a realizar o rito processual em questão presencialmente. Dentre tais estados estão Amapá, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio de Janeiro, Roraima e Sergipe, cujos retornos estão pautados, sobretudo, em rígidos protocolos de biossegurança para evitar a contaminação pelo Covid-19. 

Dentre as medidas de proteção empregadas, destacam-se, a aferição de temperatura; a utilização de protetor facial com visor de acrílico; a distribuição de kits de EPI’s e álcool em gel a todos que ingressam no ambiente onde se realizará a audiência; o distanciamento de mesas e instalação de divisórias e a higienização após cada sessão realizada. Também, deve-se salientar que desde o retorno das audiências de custódia presenciais nos estados supracitados, em sua maioria ao final do segundo semestre do ano passado, não houve, ainda, manifestações dos órgãos competentes sobre aumento no número de infectados.

As audiências de custódia são fundamentais para a garantia de direitos para a pessoa presa, pois é nesse momento que o juiz ou a juíza decide se relaxará a prisão, quando esta for considerada ilegal; se concederá a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares; ou se converterá a prisão em preventiva, em casos excepcionais, quando considerar que estão presentes os requisitos legais que a autorizam. Porém, é nesse momento também que as pessoas presas podem relatar e denunciar casos de violência policial, onde serão tomadas providências para apuração das condutas dos policiais durante a prisão. Com a realização das audiências de forma virtual, fica ainda mais difícil garantir o combate às violações de direitos, às violências e à tortura.

Por Amanda Rodrigues e Emilyn Santos

Ilustração: Alice de Carvalho

NOTAS

¹No dia 15/3/21 o CNJ expediu a Recomendação nº 91/2021, substituindo e atualizando as recomendações nº 62/2020 e nº 78/2020, acerca das medidas de enfrentamento da COVID-19 nos ambientes de privação de liberdade. Ela reforçou quase todos os pontos das anteriores, tais como a realização de audiências de custódia via videoconferência e a ausência de um plano de vacinação para a população prisional, contando com poucas medidas novas ou diferenciadas.

²Manual para a investigação e documentação eficazes da tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

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mar 16, 2021 | Artigos | 1 Comentário

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