O ITTC atua em defesa dos direitos das mulheres migrantes em conflito com a lei há 26 anos. Entre as ações promovidas pelo Instituto, está o atendimento de mais de 1500 mulheres migrantes privadas de liberdade no estado de São Paulo. Como resultado dessa ampla atuação ao longo dos anos, foi possível consolidar um Banco de Dados que reúne as informações obtidas através dos atendimentos prestados pela Instituição. A fim de divulgar e debater as informações coletadas, a equipe do Banco de Dados, a partir de 2019, passou a publicar boletins temáticos visando discutir, de forma mais detalhada, questões que tangem à vida das mulheres migrantes em conflito com a lei.
Para a 18ª edição dos nossos boletins, apresentaremos dados referentes a mulheres migrantes de países africanos em conflito com a lei atendidas pelo ITTC entre os anos de 2008 a 2019, com o objetivo de investigar os principais fluxos migratórios realizados e pretendidos, algumas características da viagem e, por fim, estabelecer um comparativo com os fluxos migratórios das sul-americanas, abordados no Boletim 17.
Nota metodológica: O Projeto Estrangeiras, hoje Projeto Mulheres Migrantes, atua há mais de quinze anos com mulheres migrantes em conflito com a lei, aplicando questionários de forma sistematizada. No período de 2008 a 2019, o ITTC aplicou questionário com 1.493 mulheres. Este questionário foi idealizado como um instrumento de atendimento que pudesse auxiliar a escuta e a qualidade do encaminhamento das demandas das mulheres em situação de prisão. Neste contexto, selecionamos todas as mulheres com residência na África para aferir os trechos do trajeto. Neste caso, a partir do país de residência. Devido à natureza da pergunta sobre o itinerário da viagem, “em caso de trânsito ou conexão, qual seria o itinerário completo da viagem?”, algumas mulheres compreenderam o primeiro país da listagem como o país de residência, enquanto outras interpretaram o primeiro país da listagem como um país diferente do país de residência. Em vista disso, quando o primeiro país da listagem não era o país de residência, o consideramos como o destino final do primeiro trecho e não como o ponto de partida. Além disso, a fim de elucidar os fluxos, ou seja, os movimentos, selecionamos trajetos com países distintos em cada trecho da viagem. Neste contexto, 369 mulheres migrantes de países africanos percorreram trajetos entre diferentes países durante a viagem. – – – – – – – – – – – – – – –
Se considerarmos as mulheres de países africanos cujas viagens tiveram apenas um trecho (92 mulheres), a maior parte são sul-africanas (61%). Nesse sentido, o trajeto mais comum é África do Sul – Brasil com 60% de frequência. Em segundo lugar, aparece Angola – Brasil (21%) e, em seguida, Cabo Verde – Brasil (4%), Namíbia – Brasil (3%) e Nigéria – Brasil (3%).
Diferentemente das sul-americanas, em que 58% executaram apenas um trecho em suas viagens, as mulheres de países africanos executaram um único trecho em 25% dos casos, sendo que o Brasil foi o país de destino de quase todas (99%) as mulheres cuja viagem possuía apenas um trecho.
Agora em relação àquelas mulheres cuja viagem possuía dois trechos (142 mulheres) – ou seja, um país de origem, um país intermediário e outro de destino -, os países de origem mais frequentes, continuam sendo, África do Sul (43%) e Angola (23%), enquanto o país intermediário com maior destaque é o Brasil (58%). Há, também, a presença do Brasil como destino final mais frequente (41%) em viagens que compreendem dois trechos.
Em termos de deslocamentos entre continentes nos dois trechos, conforme podemos observar no gráfico a seguir, o destino um das sul-americanas que percorreram ou pretendiam percorrer dois trechos fica frequentemente na América do Sul, enquanto o destino final é espalhado nos diversos continentes. As mulheres de países africanos também têm como continente frequente do destino um a América do Sul (61%) – 58% Brasil e 3% Peru e Argentina – seguido do continente africano (23%). Já o destino final, ao contrário das sul-americanas, indica um retorno ao continente de origem em mais da metade dos casos (51%).
Se considerarmos as combinações para o trajeto completo das viagens com dois trechos, há uma maior frequência de África do Sul-Brasil-África do Sul (15%), seguida de Angola-Brasil-Angola (8%), África do Sul-Emirados Árabes-Brasil (6%), Angola-África do Sul-Brasil (6%) e África do Sul-Brasil-Moçambique (4%), conforme aponta o mapa a seguir.
No que diz respeito a viagem com três trechos, 37% das mulheres de países africanos pretendiam realizá-la ou a realizaram, em comparação a 11% das sul-americanas. Dentre as primeiras, 38% moravam na África do Sul e 19% em Angola. O Brasil é apontado como o principal país do destino um (61%) e do destino final (22%) nas viagens de três trechos. Quando observamos o fluxo por continente, percebe-se que as mulheres dos países africanos têm como destino um, sobretudo, a América do Sul (68%). Contudo, o continente africano é o mais frequente durante a maior parte da viagem, uma vez que é o principal continente do destino dois e do destino final. Nesse sentido, percebe-se que a tendência final do percurso das sul-americanas é mais exógena, enquanto o das mulheres de países africanos é mais endógena: ou seja, enquanto o destino final das sul-americanas está frequentemente fora da América do Sul, o das mulheres de países africanos expressa um retorno ao continente de origem.
As mulheres de países africanos são frequentemente presas tentando sair do Brasil (89%), em um movimento de retorno para o continente africano, enquanto as sul-americanas são presas tentando sair do Brasil em menos da metade dos casos (44%) e na chegada ao país em 42% dos casos. Vale lembrar que as mulheres migrantes de ambos os continentes são presas, sobretudo, em aeroportos. Contudo, as sul-americanas apresentam um maior percentual de presas em rodoviárias e rodovias, tal como demonstra o Boletim #16 Para todos os efeitos, os dados indicam que as mulheres atendidas, sejam estas de países africanos ou sul-americanas, passam mais tempo de seus percursos se deslocando dentro de seus continentes de residência.
Em resumo, conforme podemos observar na tabela abaixo, a maior parte das mulheres que realizaram um trecho em seus percursos de viagem são provenientes da África do Sul e deslocam-se, principalmente, para o Brasil. Já para aquelas que realizaram ou pretendiam realizar dois trechos durante a viagem, a maior proporção de deslocamentos encontra-se entre África do Sul e Brasil, com algum país intermediário, ou entre África do Sul, Brasil e de volta à África do Sul. Em relação às mulheres que pretendiam executar três trechos, o Brasil e a África do Sul se destacam como países intermediários. O destino final está frequentemente no Brasil, embora o continente mais predominante seja o africano.
O trajeto realizado por Luciana¹, mulher sul-africana com identidade étnica específica atendida pelo ITTC em unidade prisional de São Paulo, pode ser um exemplo destes fluxos. Ela saiu do seu país de residência em direção ao Brasil e foi presa no Aeroporto de Guarulhos com pouco mais de três quilos de droga em bagagem despachada tentando sair do país para os Emirados Árabes. No caso, o fluxo desejado era África do Sul-Brasil-Emirados Árabes. Outro caso é o da Joana: cabeleireira autônoma na África do Sul que foi enganada por uma proposta de comprar produtos de beleza e cabelos no Brasil, assim como já relataram outras mulheres sul-africanas atendidas. Embora tenha sido uma possível vítima de tráfico de pessoas para fins de criminalidade forçada, conforme aponta a diretiva da União Europeia, ela foi presa no Aeroporto de Guarulhos, em ocasião de saída do Brasil, com pouco mais de um quilo de cocaína. O itinerário informado pelos traficantes deveria conformar a saída da África do Sul para o Brasil, depois para o Catar, em seguida para Bangladesh e, finalmente, o retorno para a África do Sul.
O Brasil aparece repetidas vezes ao longo dos trajetos. Entretanto, se estabelece, sobretudo, como um país intermediário nas viagens a partir de dois trechos. Além disso, em comparação às sul-americanas, há uma maior presença do Brasil enquanto destino final, tanto em viagens de dois trechos, quanto em viagens de três trechos. De maneira geral, 49% das mulheres de países africanos tinham o Brasil como destino final de suas viagens.
A África do Sul é o segundo país mais frequente da amostra geral de perfil do Banco de Dados e, de acordo com as informações apresentadas até aqui, é um país bastante presente nos fluxos migratórios das mulheres atendidas, seja como país de residência, como país intermediário ou como país destino. A prisão das mulheres sul-africanas no Brasil expressa não apenas um fluxo unilateral, mas, sobretudo, multilateral. As fronteiras desses dois territórios são atravessadas por mulheres de países africanos de origens múltiplas as quais viajam para destinos também múltiplos. A relação entre África do Sul e Brasil é frequentemente acionada mesmo dentro desta multiplicidade de trechos. Essa multilateralidade implica que tanto as mulheres sul-africanas têm uma forte conexão com o Brasil, quanto as mulheres sul-americanas têm uma forte conexão com a África do Sul, uma vez que este país é frequentemente mencionado por elas. Esta ponte já consolidada entre os países no campo dos fluxos migratórios e do tráfico de drogas, como também já apontada no Boletim #13, acaba por atrair mulheres de outros países a também percorrerem este roteiro. As mulheres angolanas e moçambicanas atendidas, por exemplo, frequentemente realizam o percurso, de modo que essa via de mão dupla entre África do Sul e Brasil torna-se uma rede ampla de fluxos. Importante mencionar, também, que esta conexão África do Sul-Brasil aparece tanto entre as mulheres de países africanos, quanto entre as sul-americanas.
Dentre as mulheres de países africanos, mais da metade foi presa ao viajar para o Brasil pela primeira vez (58%) em comparação a 71% das sul-americanas. Cerca de cinco em cada dez afirmaram ter sido enganadas sobre o motivo da viagem de algum modo, ou seja, afirmam não ter sido informadas que a sua viagem estava vinculada ao tráfico de drogas, dizem que foram informadas apenas durante os preparativos da viagem, durante a viagem ou apenas no momento da prisão. A viagem foi financiada com maior frequência pelo proponente do trabalho (32%), seguida de viagem financiada por amigos (27%). Enquanto para as sul-americanas, o segundo maior financiador da viagem é pessoa desconhecida (27%), para as mulheres de países africanos, as pessoas desconhecidas estão em quarto lugar (12%).
Em resumo, conforme podemos observar no gráfico a seguir, 1/4 das mulheres de países africanos tinham apenas um trecho em seu itinerário de viagem (25%). Enquanto 38% das mulheres pretendiam deslocar-se por dois trechos e apenas 37% por quatro ou mais países durante o trajeto preterido. As sul-americanas, por outro lado, deslocam-se por apenas um trecho em 58% dos casos. De maneira geral, cerca de quatro em cada dez mulheres migrantes residentes no continente africano atendidas pelo ITTC se autodeclararam ou foram identificadas como possíveis vítimas de tráfico de pessoas no período de aplicação dos questionários nas unidades prisionais, em comparação a duas em cada dez sul-americanas. Quando observamos a relação entre os trajetos e o tráfico de pessoas, as mulheres de países africanos que percorreram apenas um trecho são as que mais foram identificadas como possíveis vítimas ou se autodeclararam como tal (56%) naquele período em relação às demais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme apontado no Boletim “Conectando fronteiras: relação entre as mulheres sul-americanas em conflito com a lei e os fluxos migratórios globais”, o impacto visual dos deslocamentos traz o forte sentido sócio-político dos fluxos migratórios. Neste cenário, o comparativo dos perfis entre continentes torna esta perspectiva ainda mais latente. Em resumo, identificamos que as mulheres de países africanos tendem a retornar mais aos seus países de origem e são mais frequentemente identificadas enquanto possíveis vítimas de tráfico de pessoas ou se autoidentificam como tais. Além disso, as mulheres sul-americanas tendem a viajar por apenas um trecho, enquanto as mulheres de países africanos viajam, sobretudo, por dois ou mais trechos.
Um dos motivos pelos quais algumas destas mulheres tornam-se possíveis vítimas de tráfico de pessoas é de ordem sócio-econômica: a maior parte das mulheres são enganadas, conforme aponta Boletim #5, por propostas de trabalho e renda. No caso das mulheres africanas atendidas, principalmente por proposta de compra de mercadorias como itens de salão de beleza. O panorama geral do índice de desenvolvimento humano, publicado em 2019, afirma que a África é o continente mais vulnerável socioeconomicamente. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Econômico em África 2021, cerca de 34% das famílias africanas vivem abaixo da linha de pobreza, o que pode explicar a maior frequência de possíveis vítimas de tráfico de pessoas proveniente deste continente em nosso Banco de Dados.
Tanto a quantidade de países possíveis e prováveis dentro destes fluxos de africanas e sul-americanas (82 países no total), quanto o montante de quilômetros pretendidos e percorridos visualizados nos Mapa-Múndi destes boletins são impressionantes. Quando afirmamos que estas mulheres conhecidas como “mulas” (ou seja, desumanizadas ao serem nomeadas e utilizadas como meio de transporte) estão na base da hierarquia do tráfico, significa dizer que a relação tecida é subalternizada e bastante vulnerabilizada, com pouco ou nenhum poder de decisão. Um trajeto de milhares de quilômetros mundo afora implica, na maior parte das vezes, a saída de uma condição de pobreza e falta de assistência, por meio da promessa de uma vida melhor, para uma outra situação de provável violência e fragilidade e se estabelece no próprio transporte da droga. Um longo trajeto, nesse sentido, sugere um cenário de violências e riscos que podem ser multiplicados e/ou aprofundados pela duração e distância da viagem.
Notas
¹ Os nomes das mulheres atendidas são fictícios.
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O boletim do ‘Banco de Dados: mulheres migrantes em conflito com a lei’ é organizado bimestralmente pela equipe do Banco de Dados do ITTC em colaboração com a nossa equipe de Comunicação.
Organização: Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC
Autoria e análise: Phirtia Silva – Projeto Banco de Dados
Apoio técnico: Maria Eduarda Brommonschenkel – Projeto Banco de Dados
Revisão de conteúdo: Denise Blanes – Diretoria do ITTC, Cátia Kim e Stella Chagas – Coordenação do ITTC; e Equipe do Projeto Mulheres Migrantes;
Diagramação e revisão final: Gabriela Güllich e Laura Luz – Comunicação do ITTC