Marco Legal e desencarceramento de mulheres: audiência de custódia

Por Amanda Rodrigues, Ana Casarin e Irene Maestro


O Marco Legal da Primeira Infância, lei nº. 13.257 de 8 de março de 2016, tem como objetivo incentivar a promoção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento integral e proteção da infância.

Dentre as mudanças propostas, está a inclusão de alguns incisos ao art. 318 do Código de Processo Penal, que visa ampliar os casos de substituição de prisão preventiva por prisão domiciliar para as mulheres. Essa é uma medida alternativa à prisão que possibilita que mulheres gestantes e/ou mães que estão sendo processadas criminalmente possam aguardar em casa, e não no cárcere, a investigação e o julgamento do seu processo, permitindo estarem próximas de seus filhos.

Por sua vez, no dia 20 de fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal Federal emitiu uma decisão emblemática ao julgar o Habeas Corpus (HC) coletivo nº 143.641. Na ocasião, foi concedida a ordem de garantia do benefício da prisão domiciliar às mulheres presas preventivamente em todo o território nacional que fossem gestantes, mães de crianças até 12 anos, ou cujos filhos sejam portadores de deficiência, desde que preenchidos alguns requisitos objetivos. Com a decisão, o STF diminuiu a margem de escolha dos Juízes(as) para a concessão do benefício.

Contudo, recentemente, em decisão publicada em 26 de outubro de 2018, no âmbito dos autos do Habeas Corpus nº 143.641, o ministro relator Ricardo Lewandowski analisou diversas manifestações alegando resistências de juízes em executarem essa determinação do STF. Foi aberto prazo para que mais relatos e sistematizações de organizações e entidades possam ser apresentados, com o objetivo de demonstrar a urgência da adoção de medidas para que a decisão do HC seja efetivamente implementada em favor das mulheres negras e pobres, mais vulneráveis em termos sociais e econômicos. O ITTC está colaborando na construção de uma manifestação, na qual serão incluídos informações e dados levantados na presente pesquisa.

 

(Saiba mais: Cartilha sobre o HC coletivo para mulheres grávidas e mães de crianças de até 12 anos)

 

Perante esse cenário, o ITTC, que participou da mobilização pela concessão do HC, entendeu ser relevante realizar um estudo aprofundado dos principais obstáculos e potencialidades na aplicação da prisão domiciliar como medida desencarceradora para as mulheres, e, ao mesmo tempo, verificar como tem sido aplicada a decisão do STF nas diversas instâncias do processo criminal. 

A pesquisa “Diagnóstico da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o desencarceramento de mulheres” começou em maio de 2018. Neste artigo, primeiro da série sobre a pesquisa, descreve a primeira etapa do processo – o acompanhamento de mais de 200 audiências de custódia no Fórum Ministro Mario Guimarães, conhecido como Fórum da Barra Funda.

Primeira parte: A audiência de custódia

A pesquisa verificou que 59% das mulheres que passaram pela custódia preenchiam os requisitos legais para o cumprimento de eventual prisão preventiva em regime domiciliar.   

Como decidem os juízes e juízas na custódia?

O dado que mais chamou a atenção foi que, em 58% dos casos em que foi decretada a prisão preventiva e a mulher se encontrava em alguma das situações acima, não foi concedido o direito de substituição por prisão domiciliar, desrespeitando o que determina o Marco Legal ou a decisão do STF.

O pretexto usado com maior frequência para a negativa da concessão (29% dos casos) foi a ausência de prova da maternidade ou gravidez, o que contradiz a decisão do STF, que determina a obrigatoriedade de considerar a palavra da mãe para comprovação da situação de guardiã dos filhos.

Outro argumento muito utilizado (20% dos casos) foi a alegação de uma suposta “situação excepcionalíssima” como, por exemplo, o fato da mulher armazenar drogas em casa, ou a quantidade de droga apreendida ou até mesmo a reincidência ou maus antecedentes da mulher.

A decisão do STF determinou o cumprimento do HC coletivo, excetuados os casos de crimes praticados mediante violência ou grave ameaça contra seus descendentes ou “situações excepcionalíssimas devidamente fundamentadas”. Apesar disso, a expressão “situação excepcionalíssima”, por ser extremamente vaga e imprecisa, deu lugar a interpretações muito variadas, deixando uma margem muito ampla para os juízes e juízas determinarem o que seria a situação excepcionalíssima.

Para além dos números, destaca-se um argumento muito recorrente dos juízes e juízas: a presença da mãe é prejudicial para o desenvolvimento das crianças. “O HC coletivo do STF é para tutelar crianças e não mães criminosas como eu acho que é o caso da senhora. No caso, o melhor para o interesse das crianças é mantê-las afastadas da senhora”, disse uma das juízas na audiência de uma mulher acusada de crime de furto qualificado, que informou ser mãe de três crianças que estavam sob a sua exclusiva responsabilidade.

A mulher, cujos filhos estavam aos cuidados de outras pessoas no momento da prisão, era por vezes apontada como negligente, sendo esse fato uma justificativa para retirar-lhe o direito à prisão domiciliar. Ao mesmo tempo, percebeu-se uma forte reprovação quando a prática de infrações penais estava associada à existência de filhos. Houve uma audiência marcante, de uma mulher presa por furto de alimentos em um mercado, ao esconder um pedaço de carne na manta que embrulhava a filha recém-nascida. A juíza, no caso, entendeu que não cabia a concessão da prisão domiciliar visto que a prática de crimes na presença dos filhos constituía um mau exemplo para a formação moral deles.

Algumas conclusões preliminares

Por se tratar de uma pesquisa em andamento, ainda não é possível apresentar conclusões definitivas. No entanto, podemos trazer algumas considerações relativas ao trabalho de campo realizado nas audiências de custódia e à percepção das pesquisadoras nesse contexto.

No decorrer das audiências, foi possível perceber, com frequência, a reprodução de um discurso moralizante por parte de juízes(as) e promotores(as). A condição de mãe muitas vezes foi utilizada para reforçar a reprovação da infração supostamente cometida pela mulher e, ao mesmo tempo, para prejudicar a sua situação processual. Sob o argumento de que a prática de crimes traz impactos negativos na criação dos filhos, o judiciário deixa de aplicar a legislação. Inverte-se a lógica que motivou a criação do Marco Legal, que é justamente proteger a infância e o exercício da maternidade plena com medidas alternativas à prisão no cárcere, trazendo como resultado um reforço da criminalização da mulher e o desamparo de crianças que ficam afastadas dos cuidados e da relação com a mãe.

Isso gera uma expressiva contradição: o Marco Legal existe para amparar a maternidade daquelas mulheres que estão sendo acusadas de algum delito, mas, por supostamente terem cometido algum delito, lhes é negado o direito à prisão domiciliar previsto pelo Marco Legal.


Confira o segundo e o terceiro texto da série.

Compartilhe

nov 27, 2018 | Artigos, Noticias | 0 Comentários

Posts relacionados

ITTC - Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.