“a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra”
por SAJU
A revista vexatória é a prática imposta aos familiares dxs presxs no momento da visita por meio da qual, sob o imperativo da segurança pública e da ordem, elxs devem se despir e se submeter a um degradante exame que tem como objetivo impedir que possíveis materiais ilícitos ingressem no cárcere. Este procedimento pode incluir intervenção corporal direta sobre o corpo dos familiares, até mesmo com penetração no organismo humano por meio, por exemplo, do exame ginecológico ou de reto, realizado pelos próprios agentes penitenciários. Comumente, pede-se aos familiares — no mais das vezes, mulheres e até mesmo crianças — para se despirem, realizarem agachamentos e até tossirem de modo a verificar a existência de uma possível substância ilícita que elx estaria portando.
O que deveria ser uma medida excepcionalíssima, apenas admitida em caso de “fundada suspeita” conforme prescrito pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), ressaltando-se que sua aferição seria de caráter objetivo, ou seja, por meio de indícios que levassem o agente penitenciário a suspeitar da situação, não permitindo, portanto, que esta decisão ficasse ao seu arbítrio, acaba se tornando a regra no sistema prisional. Cotidianamente, crianças, homens e mulheres são submetidos a esta agressiva revista como condição para visitar seus familiares que se encontram enjaulados cumprindo pena privativa de liberdade. Ao arrepio da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, tal prática persiste regularmente no dia-a-dia do sistema prisional.
Conforme dados colhidos no período de dezembro de 2006 a abril de 2007, foi constatado que numa amostragem de mais de 10.000 visitantes, foram realizadas apenas 03 apreensões de materiais ilegais, quer dizer, aproximadamente 0,1% das pessoas revisitadas tentaram levar para dentro do cárcere algum objeto proibido[3]. Diante desta situação, pergunta-se: seria justificável submeter tanta gente a um procedimento humilhante sendo que, como os dados mostraram, sua eficácia é duvidosa? Aqui cabe perguntar: de onde vêm então os materiais ilegais (armas, drogas e celulares) que de fato são encontrados dentro dos presídios? Qual o sentido político e qual a razão prática de manter este procedimento aberrante que é a revista vexatória? Por fim, a que(m) ela serve?
Nossa ideia é que, apesar de pouco eficaz para conter violações na rotina das prisões, a revista vexatória traz consigo um efeito muito mais perverso e significativo nos corpos e imaginário da classe pobre que, desnecessário dizer, é a cliente preferencial do sistema penal. Isto é: ao submeter os visitantes — pobres, negrxs periféricxs- às minúcias e incursões agressivas da revista vexatória, constrói-se um imaginário que os coloca em uma situação de não detentores de direitos, que não fazem jus à proteção jurídico-estatal e que se encontram à margem da rede de direitos que asseguraria uma condição digna de existência. Tal imaginário construído por meio de uma rotina de usos e abusos do poder, violações e agressões físicas e simbólicas — sendo a revista vexatória um dos seus pontos altos — acompanha e legítima a sistemática violência que o Estado impõe aos estratos subalternos. Ao se despirem de suas roupas para passarem aos rigores da revista vexatória, o que se está despindo na verdade é sua roupagem jurídica e seu reconhecimento pelo Estado de que são portadores de direitos e, portanto, poderiam se opor à ordem pública quando estes fossem violados.
Assim, os efeitos políticos da revista vexatória são a legitimação da violência estatal contra a classe pobre com base nas intervenções de poder que introjetam em suas mentes, e se faz sentir em seus corpos, a negação do direito. Coloniza seu imaginário e marca em suas peles seu status de Homo sacer, ou seja, a vida matável mas insacrificável que habita uma zona de indistinção entre direito e fato e que está exposta à exceção a todo momento. Giorgio Agambem resgata a figura do Homo sacer do Direito Romano para jogar luz sobre a política contemporânea, identificando nesta ambivalente e misteriosa figura a estrutura originária da política que persiste mesmo no interior das nossas democracias liberais. Por isso, entendemos que a revista vexatória, interligada que está com um amplo circuito de opressões e violências diárias, ajuda a imprimir em suas almas a condição de homo sacer, aquele que se encontra paradoxalmente fora e dentro do ordenamento jurídico, excluído de qualquer proteção pela suspensão inclusiva que o direito lhe outorga.
O poder, para se exercer, precisa se apresentar como natural, inevitável e necessário. Não pode ser questionado nem encarado de frente. A revista vexatória nos faz lembrar desta faixa de banalidade com a qual o poder procura se mascarar. Faz lembrar também das palavras de Walter Benjamim de que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra”. Estado de exceção este que se materializa no genocídio da população jovem e negra nas periferias das grandes cidades, nas operações de reintegração de posse brutais e impiedosas, nos famigerados “autos de resistência” da Polícia Militar, na disfuncionalidade dos serviços públicos e na invisibilidade com a qual classe pobre convive e sobrevive.
Por isso, denunciar a revista vexatória é uma tarefa política fundamental. É preciso atacar sua existência intransigente e mostrar sua inter-relação com uma gama maior de opressões dirigidas contra as classe pobre, dotadas de materialidade física mas também simbólica, como nós procuramos sublinhar. Isto só será alcançado por meio da insurgência, crítica e luta tanto dos setores subalternos quanto daqueles que neles se reconhecendo, em sua dor mas sobretudo em sua luta, como já nos dizia Paulo Freire, empreenderem a construção ético-política de uma outra realidade.
É apenas na luta que se mudam as práticas, se apagam velhos consensos e se constroem novas verdades e um novo olhar sobre os problemas humanos.
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Fonte: https://medium.com