Maternidade e justiça criminal: impacto do HC Coletivo nas audiências de custódia

O relatório MulhereSemPrisão: enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal, lançado pelo Programa Justiça Sem Muros, do ITTC, é resultado de uma pesquisa realizada nos anos de 2017 e 2018 e centrada nas mulheres que passaram pelas audiências de custódia nas cidades de São Paulo e Osasco.

A pesquisa buscou entender como se dá o primeiro contato da mulher com o sistema de justiça. Além de acompanhar mais de 200 mulheres levadas aos fóruns criminais, foram realizadas diversas entrevistas com profissionais envolvidos no procedimento para entender como os atores do sistema de justiça manejam questões de gênero e vulnerabilidades sociais das mulheres com as quais se deparam.

Logo no início do trabalho de campo, a equipe notou uma forte resistência desse sistema em ter um olhar diferenciado para as mulheres, e observou que a questão da maternidade era pouco utilizada como instrumento para o desencarceramento. Diversas vezes as decisões em audiência de custódia não levavam em consideração que, independentemente de estarem em contato com a justiça, as mulheres exercem um papel crucial na manutenção do lar, e uma eventual prisão abalaria a estrutura socioeconômica da família, bem como as vidas daqueles e daquelas que fazem parte do seu círculo social próximo.

Além disso, os atores comumente se manifestavam contra a concessão de prisão domiciliar para mulheres mães, descumprindo a Lei nº 13.257, conhecida como “Marco Legal da Primeira Infância”. Aprovado em 2016, o Marco Legal inseriu ferramentas garantidoras de liberdade para as mulheres no Código de Processo Penal, ampliando as hipóteses de concessão da prisão domiciliar. Mesmo com a legislação, a equipe observou que esse direito vinha sendo sistematicamente negado, com o agravante de que as mulheres comumente selecionadas pelo sistema penal têm pouco acesso à justiça e a informações que as façam compreender suas prerrogativas legais.

Em março de 2017, o descumprimento cotidiano do Marco Legal por membros do Judiciário tornou-se o retrato explícito da desigualdade, pois foi concedida a prisão domiciliar em razão da maternidade à Adriana Ancelmo, esposa do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Mãe de dois filhos, ela teve prisão preventiva substituída por prisão domiciliar para que pudesse ficar em casa com seus filhos. O alto poder aquisitivo, a posição de ex-primeira dama e o acesso à defesa garantiram à Adriana aquilo que era negado rotineiramente a milhares de mulheres Brasil afora, que continuavam no cárcere e não podiam aguardar seus processos em seus domicílios.

Motivados por esse tratamento discrepante e pelo desrespeito às prerrogativas das mulheres encarceradas no país, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal, pedindo que todas as mulheres mães, gestantes, lactantes ou puérperas presas provisoriamente no sistema penitenciário brasileiro fossem postas em liberdade ou em prisão domiciliar. O ITTC participou da ação como amicus curiae, e, para sanar a ausência de dados oficiais sobre maternidade no sistema penitenciário, realizou com a Pastoral Carcerária e o IBCCRIM um mapeamento sobre a quantidade de mulheres presas provisoriamente em todo o país nas condições definidas pelo Marco Legal da Primeira Infância. Os números obtidos na época revelaram pelo menos 4.560 mulheres presas preventivamente em condições ilegais, mas é notório que a cifra é superior. De acordo com os dados fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional, mais de 15 mil mulheres poderiam ser contempladas por esse direito.

Em fevereiro de 2018, a corte deu uma decisão histórica e concedeu o Habeas Corpus coletivo 143.641, que determina a substituição da prisão preventiva pela domiciliar à todas as mulheres presas que ainda não tenham sido julgadas e que sejam gestantes, puérperas, mães de crianças de até 12 anos e/ou de pessoas com deficiência. A decisão cabe também para adolescentes mães em cumprimento de medidas socioeducativas, de modo que ficam de fora apenas mulheres acusadas de crimes praticados mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes (filhos, netos etc.), ou outras situações excepcionalíssimas – que devem ser devidamente fundamentadas.

Cabe lembrar que a prisão domiciliar ainda é uma forma de prisão, e se diferencia pelo fato de que a privação se dá em domicílio, onde a mulher deve ficar 24h por dia. Assim, ela é restritiva de liberdade, mas permite que a mulher tenha condições mais adequadas para cuidar de si e de seus filhos do que no cárcere. Desse modo, o HC coletivo foi uma importante conquista no sentido de reduzir consideravelmente os danos que a prisão – e as graves violações de direitos humanos que ali ocorrem – causam às mulheres, seus filhos e à sociedade como um todo.

Esse fato histórico também permitiu a coleta de dados inéditos durante as pesquisas realizadas nas audiências de custódia, pois alterou o modo como o Judiciário trata as mulheres em privação de liberdade e a questão da maternidade. As pesquisadoras tiveram a oportunidade de acompanhar de perto os desdobramentos da decisão do Supremo no dia a dia dos fóruns criminais e como ela foi aplicada, ignorada ou distorcida. O relatório de pesquisa traz achados em relação a como o HC alterou a dinâmica das audiências de custódia e foi apropriado de diferentes formas por defensores, magistrados e promotores responsáveis pelos casos das mulheres.

Para saber mais sobre a questão do HC e a última pesquisa do ITTC, acesse o relatório completo.

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maio 9, 2019 | Artigos | 0 Comentários

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