As Mulheres no Sistema Carcerário

Desde há muito, vem sendo advertido, dentre os especialistas em execução penal, que a superação dos complexos problemas trazidos pela pena privativa de liberdade exige o máximo envolvimento e reais compromissos da sociedade civil e, em última instância, de toda a comunidade.

De um lado, não se admite mais que a execução dessas penas seja um assunto exclusivo da Administração Pública, fechada em si própria. De outro, percebeu-se igualmente que a fórmula de sua jurisdicionalização, embora imprescindível, não logrou vencer o espírito corporativo e opaco impresso por séculos na magistratura brasileira. Com isso, tanto a Administração Pública quanto o Poder Judiciário, apesar de algumas exceções puramente individuais, mostram-se afinal incapacitados ou absolutamente indisponíveis para comportar os institutos racionalizantes, humanizadores e civilizatórios da execução penal que se buscou implantar a partir da Reforma Penal de 1984.

A superação desse quadro, de cores nitidamente reacionárias e tristemente conservadoras, apenas pode ocorrer a partir da implicação imediata da sociedade civil nessa problemática, ainda que tal implicação possa eventualmente apresentar-se como força adversa ou mesmo oposta aos discursos oficiais produzidos pela Administração Pública e pelo Poder Judiciário, forçando estes à erupção de suas contradições e ao enfrentamento de suas deficiências.

A partir dessa análise, reuniram-se por diversas vezes a Associação Juízes para a Democracia, o Coletivo para Liberdade e Reinserção Social – COLIBRI, o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC e a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo/Comissão da Mulher Advogada e comissão de Direitos Humanos. Nessas reuniões concluiu-se pela necessidade de um debate mais amplo sobre a situação da execução penal em sentido amplo e, mais particularmente, sobre a condição específica e duplamente vulnerável da mulher presa. Embora quantitativamente a população prisional feminina seja bem inferior à masculina, porém é certo, que sua problemática apresenta aspectos próprios que apenas a realçam como mais séria e gravosa, eis que sobre a vulnerabilidade já complexa das relações sociais de gênero deposita-se, nesse caso, a vulnerabilidade da condição de pessoa presa ou condenada pela Justiça Criminal. Ressalta-se aí, a necessidade de mais pronta e firme intervenção da sociedade civil e das organizações não governamentais em prol dos direitos humanos das mulheres, encontrando-se aí um capítulo especialíssimo, decisivo e fundamental da luta pelos direitos humanos em geral.

As entidades organizadoras resolveram então realizar um primeiro encontro denominado “A Mulher no Sistema Carcerário”, que aconteceu na capital de São Paulo, no dia 17 de setembro de 2001. Esse encontro contou com a participação das equipes das entidades organizadoras e, como convidados, diversos setores da sociedade civil, da Administração Pública e do Poder Judiciário, inclusive com alguns representantes de outras Unidades da Federação. Durante todo o dia, debateu-se uma agenda de temas, dividindo-se os participantes primeiramente em grupos e extraindo, ao final, emendas aprovadas unanimemente em plenário. A partir dessas conclusões unânimes, as entidades organizadoras assumiram a incumbência de apresentá-las às autoridades do Poder Judiciário, da Administração Pública e de outras entidades para discussão, visando, ainda, dar uma contribuição para a melhoria da situação da mulher presa.

A síntese conclusiva do encontro apontou para a situação de exclusão da mulher presa, agravada não só por seu perfil biográfico-social, e também pelo tratamento que o aparelho jurídico-penal lhe confere, acentuando-se sua discriminação no interior do sistema carcerário que desatende continuadamente seu direito à saúde, seus direitos sexuais e reprodutivos (especialmente à expressão de afetividade e sexualidade), a preservação do seu núcleo familiar, entre outros.

Apresentamos a seguir, a síntese dessas emendas unânimes que surgem como proposta de um debate inicial que sabemos, apenas preconizado, mas que se faz, a cada dia, mais e mais imprescindível. São Paulo, setembro de 2001.

VISITA ÍNTIMA

A visita íntima feminina ainda não foi implantada no Estado de São Paulo, em desrespeito ao direito fundamental da mulher presa, particularmente ao de igualdade, motivo pelo qual ela deve ser efetivada de imediato para resgatar a dignidade humana da presa.

A visita íntima deve ser compreendida em seu sentido amplo, tratando-se de um direito, com preservação da intimidade, não sendo possível afirmar que é uma regalia, como consta do Regimento Interno Padrão dos Estabelecimentos Prisionais do Estado de São Paulo, datado de 1999.

Recomenda-se a alteração deste regimento que prevê a visita íntima, exclusivamente para as pessoas do sexo masculino.

A Resolução 1/99 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária que estabelece que o direito à visita íntima em presídios seja assegurada a ambos os sexos.

Deve-se atender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres presas, garantindo-lhes:

– O acesso aos serviços de saúde da mulher;
– O aconselhamento de saúde sexual e reprodutiva, incluindo a discussão e oferta de métodos contraceptivos e de prevenção as DST/Aids; sempre com a observância do direito da presa à gravidez e à maternidade;
– A urgente capacitação das profissionais de saúde e agentes penitenciários, sem retardar o início da implementação da visita íntima, que é um direito assegurado pela estrutura legal vigente;
– A realização de cursos de formação visando a capacitação das presas, agentes penitenciários e agentes de saúde, inclusive com a participação sociedade civil (Conselho de Comunidade e Organizações não Governamentais – ONG’s);
– Que tais cursos reflitam a construção social da sexualidade e as relações de gênero, bem como destaque às questões referentes a método contraceptivo, número de consultas ginecológicas, exames de papanicolau e preventivo do câncer de mama.

Foi firmado compromisso pelas diretoras das Penitenciárias Feminina da Capital, Tremembé e Tatuapé de implantação da visita íntima para as presas, a qual pode e deve acontecer de imediato.

TRABALHO

O trabalho da presa é uma das vertentes do exercício da cidadania, razão pela qual não poderá ter caráter de exploração.

Devem ser reconhecidos os direitos trabalhistas e previdenciários à trabalhadora presa, buscando-se a máxima identificação dessas trabalhadoras àquelas em liberdade.

Deve ser estimulado o empresariado para investir em mão-de-obra prisional com incentivos sociais, não se admitindo porém, discriminação da trabalhadora presa com restrições a seus direitos sociais e individuais.

Se hoje o interesse no trabalho prisional dá-se apenas pelo baixo custo da mão-de-obra prisional, devem ser criados os mencionados incentivos como atrativos, sem perder de vista a observância dos direitos trabalhistas: pagamento de, ao menos, um salário mínimo mensal, férias remuneradas com acréscimo constitucional e décimo-terceiro salário.

A reforma da LEP neste tocante é urgente, inclusive como medida de maior afinidade às mais recentes orientações internacionais, inclusive da Organização Internacional do Trabalho (OIT), bem como em consonância à finalidade primordial da pena privativa de liberdade, a ressocialização dos presos, com estrita atenção a sua dignidade.

Os contratos devem ser geridos e fiscalizados pela Administração Penitenciária, garantindo-se a salubridade e o recebimento da remuneração mínima, como apontado, inclusive com a constituição de cooperativas pelos presos, tanto para produção como comercialização.

Como trabalho, para efeito da remição, deve ser considerado todo o esforço físico e/ou intelectual, devidamente comprovado por atestado da direção do estabelecimento prisional, a ser enviado, mensalmente, ao juízo competente. Portanto, deverá ser computado o período destinado à educação, inclusive à distância, para fins de remição.

RELAÇÕES FAMILIARES

A prevalência nesta relação é dos interesses da criança e adolescente filhos da mulher presa, conforme mandamento constitucional.

Na execução da pena, toda a ação deverá ser norteada pela aplicação do regime especial legalmente previsto para mulher no artigo 37 do Código Penal, objetivando a reinserção da mulher na estrutura social e a manutenção se seus vínculos familiares, especialmente com as crianças e adolescentes.

Aos juízes das Varas da Infância e Juventude e de Família, nas ações de estado, tendo em vista o princípio da indisponibilidade e o princípio constitucional de prevalência, cabe tomar as medidas necessárias para que as citações e intimações das presas sejam pessoais, não se admitindo, em qualquer hipótese, a validade da citação ficta da mulher presa em ações desta natureza.

Sugere-se alteração das Normas de Serviço da Corregedoria de Justiça/SP para que os juízes procedam à consulta aos órgãos do sistema carcerário, com o fim de assegurar a ampla defesa, o contraditório e efetiva assistência jurídica às mães eventualmente custodiadas.

Sugere-se ainda, a criação de procedimento para efetivo registro do recém nascido, filho de presa.

Impõe-se agilizar os pedidos de filhos com mães presas para visitá-las. Tais visitas devem ser franqueadas, de forma regular e constante, em local próprio. Sugere-se também, a elaboração de banco de dados na administração, com anotação dessa especificidade (mãe presa, filho interno na Febem, etc) e comunicação imediata para equipe técnica do presídio.

Necessário aumentar o número de assistentes sociais e dar condições materiais para desenvolver o trabalho de aproximação das mães e filhos. Ressalta-se a importância de tais contatos, nos quais a mãe presa deve comparecer sem algemas, resguardando-se sua dignidade.

Garantia da amamentação e permanência na companhia dos filhos recém-nascidos, no prazo de, pelo menos, seis meses.

As presas grávidas, recolhidas em estabelecimento penal da Secretaria de Segurança Pública, deverão ter prioridade na transferência para estabelecimento da SAP.

Cumprimento da pena pela mulher presa, o mais próximo possível, do local onde estão seus filhos e familiares.

SAÚDE

Para um efetivo e mais adequado atendimento ao direito fundamental à saúde da presa, é necessário que esse serviço desvincule-se do âmbito da SAP, ficando a cargo da Secretaria da Saúde. Perante tal Secretaria ficarão subordinados os agentes de saúde e, ainda, poderá ela celebrar convênios com Universidades ou quaisquer outros segmentos da Administração Pública direta e indireta visando melhor e mais ampla assistência aos presos.

É indispensável à inclusão dos presos no SUS (Sistema Único de Saúde), medida a ser cumprida no âmbito dos Ministérios da Saúde e da Justiça, para garantir atenção à assistência integral à saúde da população carcerária.

A promoção e a assistência à saúde em geral devem se dar mediante formação de equipes multidisciplinares que deverão atuar dentro dos presídios.

O corpo clínico deverá ser composto, além do clínico geral, por médicos especializados, dentistas e enfermeiros, bem como todos os estabelecimentos prisionais femininos deverão contar com a presença de ginecologistas e psiquiatras.

É imperioso estabelecer rotina anual para realização de exames papanicolau para todas as presas e mamografia para presas acima de 30 anos.

É preciso substituir as formas repressivas e discriminatórias tradicionais de tratamento por uma política de reinserção adequada, especialmente nos casos de dependência química, saúde mental, DST e Aids.

Deve haver a promoção de cursos de capacitação da população carcerária feminina, voltada para área da saúde em geral e da mulher, destinada à formação de agentes de saúde, multiplicadoras de informações.

O envolvimento da comunidade na fiscalização dos serviços e na divulgação dos projetos também é essencial para a consecução dessas finalidades.

Uma política de redução de danos no sistema prisional transborda a questão dos malefícios do uso abusivo de droga, para uma redução de danos dos efeitos da prisionalização em geral.

Todos os estabelecimentos prisionais devem estabelecer espaço para a vida cotidiana: visita íntima, creche, convivência com filhos, saúde mental, etc.

No plano das drogas, faz-se necessário como medida de racionalização e humanização, o enfrentamento primeiro, pelas Varas Criminais, da criminalização do uso de drogas e da condenação ao crime de tráfico de entorpecentes, ao usuário/pequeno traficante, a partir da efetiva realização de exame de dependência química que recomendaria um tratamento hospitalar comum e ambulatorial, não manicomial, como preconiza o artigo 10 da Lei 6368/76.

Dentro do presídio, o tratamento e a orientação às presas usuárias de drogas, no âmbito de uma política de redução de danos, deveriam alcançar, também, as agentes penitenciárias, visando ainda o combate de tráfico e uso abusivo de drogas no estabelecimento prisional.

Às presas dependentes de substância química e portadoras de deficiências mentais leves deve-se ter garantido o acesso a tratamento ambulatorial.

POLÍTICAS PÚBLICAS DE EXECUÇÃO PENAL

Uma política pública de execução penal que contemple as especificidades da mulher presa só será efetivada quando da criação de uma Vara das Execuções Criminais para mulheres, sem a qual as questões femininas prisionais perdem-se em sua minoria numérica nos milhares processos de execução.

Nesse sentido mister se faz:

– A participação da comunidade através de Conselhos Penitenciário, da Comunidade e ONG’s.
– Instar os Governos Federal e Estadual na criação de estabelecimentos prisionais femininos regionalizados (CR – centros de ressocialização);
– A assunção pela SAP dos DACAR I e IV e das cadeias públicas femininas;
– A criação de Ouvidoria das Mulheres Presas dentro dos Conselhos Federal e Estadual dos Direitos da Mulher;
– Instar o Poder Judiciário a efetivar a criação e atuação do Conselho da Comunidade, inclusive, nas omissões, com comunicação periódica à Corregedoria Geral da Justiça.

A realização de visitas mensais do Juiz Corregedor ao estabelecimento prisional é imprescindível para efetivação de política pública de execução penal.

Com relação aos direitos políticos, é essencial a edição de emenda constitucional para assegurar o direito de voto aos presos condenados, revogando o impedimento constante do artigo 15 da Constituição Federal. A garantia de tal direito ao preso guarda substancial afinidade com os princípios constitucionais norteadores da pena.

Aos presos provisórios, diante da não vedação constitucional, deve ser assegurado o exercício do direito ao voto sempre que a prisão ocorrer no domicílio eleitoral do preso, ou, na hipótese contrária, deve ser assegurada à justificação.

Destacar que não existe vedação legal a concessão de liberdade provisória, progressão de regime e livramento condicional para presas estrangeiras, impondo-se atenção à Constituição Federal que consagra, em seu art. 5º, o princípio da igualdade, atribuindo, textualmente, direitos fundamentais a brasileiros e a estrangeiros.

Assegurar aos estrangeiros processados criminalmente e que cumprem pena, em atenção ao princípio constitucional da isonomia, bem como da ampla defesa e do contraditório, intérpretes em todos os atos inquisitórios, judiciais ou administrativos.

Compartilhe

set 26, 2013 | Artigos

Posts relacionados