O monitoramento eletrônico e a hipótese de desencarceramento

Por Ricardo Campello*
Artigo publicado na Folha de S. Paulo

O monitoramento eletrônico de indivíduos condenados pelo sistema de justiça criminal foi legalmente determinado no Brasil em junho de 2010, por meio da Lei Federal 12.258, que alterou a Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84). Entretanto, desde 2008, a medida já vinha sendo implementada em diversos estados por meio de experiências localizadas, que foram consagradas por leis ratificadas inconstitucionalmente nas Assembleias Legislativas de São Paulo (Lei 12.906/08), Rio Grande do Sul (Lei 13.044/08) e Rio de Janeiro (Lei 5.530/09). A lei fluminense possibilitava, inclusive, a utilização de chip subcutâneo implantado por via cirúrgica no corpo de apenados.

A emergência da modalidade eletrônica de execução penal no Brasil foi impulsionada por uma convergência de práticas e discursos díspares. De um lado, movimentos ancorados em políticas de Lei e Ordem apregoavam a necessidade de intensificação dos controles exercidos sobre indivíduos em cumprimento de medidas penais em meio aberto. De outro, entidades ligadas à defesa dos direitos humanos defendiam a utilização de mecanismos que favorecessem um possível processo de desencarceramento. Compondo essas duas forças heterogêneas, empresas de capital privado ligadas à segurança e ao controle do crime encontravam no sistema penal brasileiro um negócio de dimensões continentais.

Com a aprovação, em âmbito federal, da Lei 12.258/10, os dispositivos eletrônicos de monitoramento passaram a ser aplicáveis em casos de saída temporária no regime semiaberto de cumprimento de pena, bem como na determinação de prisão domiciliar (146-B da Lei 7.210/84 – LEP). Ou seja, o rastreamento foi disponibilizado àqueles que já cumpriam medida penal fora da prisão-prédio, ou dos que já possuíam, por decisão judicial, o direito de sair dela periodicamente.

Por conseguinte, o emprego do monitoramento nos casos previstos pela referida lei não apresentou impacto algum no sentido de reduzir a população prisional ou possibilitar o desencarceramento anunciado por aqueles que defendiam a medida. Permitiu, ao contrário, o reforço do controle sobre os que já transitam entre a prisão e as zonas de circulação delimitadas pelo juiz. O propósito do legislador, ao que o texto indica, foi apenas destinar o mecanismo para fins de ampliação da supervisão penal, por meio da detecção contínua e georreferenciada dos deslocamentos do condenado ao regime domiciliar ou semiaberto.

Em razão disso, elaborou-se uma nova legislação que, desta vez, prometia reduzir o enorme contingente de indivíduos submetidos à prisão provisória no país. Em maio de 2011, foi sancionada pela Presidenta da República, Dilma Roussef, a Lei 12.403 que alterou o Art. 319 do Código de Processo Penal, prevendo em seu inciso XI a “monitoração eletrônica” como medida cautelar autônoma. O rastreamento telemático passava a compor o cardápio de medidas preventivas à disposição dos magistrados, como alternativa ao encarceramento daqueles que ainda não obtiveram a condenação decretada.

Devemos, portanto, lançar um breve olhar sobre os índices de encarceramento no país para verificar os possíveis efeitos da implantação do monitoramento eletrônico de condenados ou processados pelo sistema de justiça criminal. O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) aponta que em 2009, cerca de um ano antes da promulgação da Lei 12.258/10, o número absoluto de presos no sistema penitenciário nacional era de 469.546 indivíduos. Já em junho de 2014, os dados publicados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam para um contingente de mais de 563 mil pessoas encarceradas nos presídios do país.

Em termos relativos, se em junho de 2009 havia cerca de 248 presos por 100 mil habitantes no Brasil, em junho de 2014 essa taxa chegou a mais de 282. No que diz respeito apenas aos presos provisórios, se em dezembro de 2010 –poucos meses antes da promulgação da medida que possibilitava a aplicação do rastreamento em substituição à prisão preventiva – havia um total de 164.683 indivíduos presos provisoriamente no Brasil, em junho de 2014 – cerca de três anos após a determinação do monitoramento cautelar – esse número já alcançava os 231.045, representando 41% da quantidade de indivíduos encarcerados no país.

Os anos imediatamente posteriores à implantação do controle eletrônico não apresentaram recuo algum nos índices de aprisionamento, contrariando a argumentação daqueles que almejavam o controle via satélite e intercomunicação policial e penitenciária como medida de desencarceramento. Submetido à racionalidade punitiva, inerente ao próprio sistema penal, o monitoramento figura como mecanismo complementar ao cárcere, funcionando como instrumento de potencialização do alcance e da versatilidade com a qual se transforma e perpetua o regime de punições.

Observamos um movimento crescente de ampliação do poder punitivo do Estado, agora em parceria com o capital privado. Das secretarias de segurança pública e administração penitenciária às empresas que oferecem serviços e tecnologias de rastreamento, pulverizam-se os controles penais que extrapolam espaços delimitados pelas arcaicas muralhas. Para além do Grande Irmão orwelliano, ou mesmo do modelo pan-óptico de fiscalização intramuros, investigado por Michel Foucault, estamos diante de controles descentralizados e compartilhados entre agentes diversos, mais próximos das sociedades de controle sinalizadas por Gilles Deleuze. Questionar as políticas de encarceramento, por um lado, e de fortalecimento de controles penais em meio aberto, por outro, é indagar qual o tipo de sociedade que se deseja construir.

*Ricardo Campello é mestre e bacharel em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisador do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e autor do livro Política, direitos e novos controles punitivos: o monitoramento eletrônico de presos.

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nov 17, 2014 | Sem categoria | 0 Comentários

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