A descriminalização da maconha e a política proibicionista 

Por Carolina Dutra, do Programa Justiça Sem Muros

Em junho de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o porte de maconha para uso pessoal não é mais considerado crime. Essa decisão é resultado de discussões iniciadas no plenário em 2015. 

Esse julgamento avaliou a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (11.343/2006), que trata do transporte e armazenamento para uso pessoal. Parte dos ministros defendeu a definição de um limite em gramas para diferenciar usuários de traficantes, algo que a lei não especifica. Essa discussão se acentuou a partir de um recurso interposto pela Defensoria Pública de São Paulo (DPESP), contra a condenação de um homem que foi pego com três gramas de maconha no Centro de Detenção Provisória de Diadema, em São Paulo, em 2009.

A proibição do uso de substâncias e a proliferação de políticas antidrogas são elementos da lógica proibicionista, caracterizada por intolerância, repressão, contradição e punição. As consequências desse fenômeno são as principais causas do encarceramento em massa de mulheres, imigrantes e grupos vulneráveis.

O tratamento jurídico dos crimes relacionados ao tráfico de drogas no Brasil tem resultado no aumento exponencial do encarceramento da população jovem, negra e periférica, afetando principalmente as mulheres.

Para entender os impactos da política de drogas na prática, é útil criar uma linha do tempo que comece com a abordagem policial de um indivíduo. Essa abordagem utiliza parâmetros que auxiliam na classificação de condutas individuais tidas como “suspeitas”, o que pode levar a penalidades distintas. Critérios objetivos podem diferenciar condutas como “uso problemático” e “uso recreativo”, “uso” e “tráfico”, “pequeno tráfico” e “grande tráfico”, “pequena produção” e “grande produção”. Esses critérios podem se basear na quantidade da substância, sua pureza, tipo, valor ou uma combinação de todos esses fatores.

Os critérios podem ser definidos por lei ou decisão judicial, e sua aplicação pode ser feita pelas polícias durante a abordagem, pelo sistema de justiça, por especialistas ou por uma comissão interdisciplinar.

No entanto, a adoção de critérios objetivos não modifica as condições da abordagem policial, resultando em relatos de adulteração ou implantação de substâncias em casos de flagrante, considerando que o policial é frequentemente a única testemunha em prisões em flagrante.

Após a classificação do indivíduo durante a abordagem policial, ele é levado à delegacia, onde o delegado utiliza os critérios objetivos para determinar a periculosidade da pessoa e a acusação. Em seguida, a pessoa é encaminhada à audiência de custódia, onde o juiz de direito usa os mesmos critérios para decidir os crimes pelos quais o indivíduo será julgado. Anteriormente, qualquer quantidade de substância poderia levar a processos por tráfico.

Por exemplo, uma análise do Ipea de 5.121 processos em tribunais revelou que 58,7% dos casos de tráfico de maconha envolviam apreensões de menos de 150 gramas. A pesquisa também mostrou que cerca de 70% das substâncias apreendidas eram cocaína e 67% eram maconha, com quantidades médias de 24 gramas de cocaína e 85 gramas de maconha.

Em relação ao perfil das pessoas envolvidas em processos criminais de drogas, 86% são homens, 71,26% têm 30 anos ou menos, 65,7% são negros e 68,4% não concluíram o ensino médio. Em 2014, o relatório “Mapa das Prisões” da Conectas Direitos Humanos apresentou resultados semelhantes no universo penitenciário brasileiro, indicando que mais de 60% dos detentos são pretos ou pardos, 74% têm menos de 35 anos e 70% não completaram o ensino fundamental.

Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2016 mostraram que a população negra privada de liberdade (pretos e pardos) totaliza 63,4% da população carcerária nacional. Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), pardos e pretos representam 52,8% da população brasileira. No mesmo relatório, entre os presos com ensino fundamental completo ou incompleto, esse percentual é de 64,13%.

A luta contra o encarceramento em massa também tem sido intensamente travada por familiares de pessoas presas. Organizações de familiares e movimentos sociais têm se mobilizado para denunciar abusos, promover campanhas de conscientização e pressionar por mudanças legislativas. Essas ações buscam não só a revisão de condenações injustas, mas também a humanização das condições carcerárias e a reintegração social dos detentos. O apoio e a visibilidade que esses familiares trazem são fundamentais para expor as falhas e injustiças do sistema penal brasileiro, ressaltando a necessidade urgente de uma reforma na política de drogas e no sistema de justiça criminal.

Contudo, a recente descriminalização do porte de maconha para uso pessoal provavelmente não afetará significativamente a grande parte das pessoas atualmente encarceradas. Na prática, são os critérios subjetivos, como a cor da pessoa, o local da abordagem e outros fatores, que frequentemente determinam se alguém será enquadrado como traficante ou usuário. Esses critérios subjetivos perpetuam desigualdades e injustiças no sistema penal, sublinhando a necessidade de uma mudança mais profunda e abrangente para realmente impactar a população encarcerada e vulnerável.

Descriminalizar apenas o porte pessoal de maconha não resolve o problema do encarceramento massivo e da violência policial contra setores específicos da população. Enquanto os critérios subjetivos continuarem a influenciar as abordagens policiais e decisões judiciais, as desigualdades persistirão. Para uma mudança significativa, é essencial abordar as raízes dessas desigualdades e implementar uma reforma ampla que inclua a revisão das práticas policiais e judiciais, além da descriminalização de outras substâncias e a reavaliação das penas para o tráfico.

Estabelecer critérios objetivos como a única forma de diferenciação pode fazer com que pessoas portando quantidades acima de 40 gramas sejam automaticamente processadas como comerciantes, sem a possibilidade de se defenderem como usuárias. Se a quantidade de substância que a lei autoriza portar for muito baixa, há um grande risco de, na prática, continuar punindo usuários. Além disso, há sempre o risco de arbitrariedades na diferenciação entre usuários e comerciantes. Avaliações meramente subjetivas – feitas pela polícia, assistência social ou médicos – podem criar “perfis” que estigmatizam, por exemplo, usuários de periferia como comerciantes ou moradores de rua como usuários problemáticos. Na mera aplicação de critérios objetivos pelo Judiciário, pode ser desconsiderado que cada caso tem suas particularidades que precisam ser avaliadas de forma individual.

Ainda que o uso não seja penalizado, usuários frequentemente são presos por pequenos furtos cometidos com o objetivo de sustentar o uso. Esse tipo de criminalização secundária de atividades relacionadas a drogas reflete uma lacuna na política de redução de danos, já que afeta mais marcadamente pessoas de baixo poder aquisitivo e usuárias de substâncias consideradas pelo discurso médico e jurídico como mais “perigosas”. A criminalização secundária perpetua a marginalização e o encarceramento de indivíduos vulneráveis, sem abordar as causas subjacentes do uso problemático de drogas ou oferecer alternativas de apoio e tratamento.

A diferenciação entre “uso problemático” e “uso recreativo” é especialmente delicada. Se o uso não problemático é aquele realizado por maiores de idade sem causar distúrbios à ordem pública ou danos a interesses de terceiros, o uso de substâncias por populações marginalizadas ou em situação de rua frequentemente é caracterizado como “problemático”. Essa diferenciação pode ser arbitrária e injusta, pois estigmatiza usuários vulneráveis e perpetua a criminalização de quem mais precisa de apoio e cuidados, em vez de punição. A política de drogas deve ser sensível às condições sociais e econômicas dos usuários, reconhecendo que a marginalização e a pobreza são fatores determinantes no uso de substâncias e nas interações com o sistema de justiça criminal.

Além disso, pessoas que ocupam cargos mais baixos, como as que transportam drogas consideradas “correios humanos” de substâncias ilícitas ou reguladas pelo Estado, como drogas e medicamentos, são totalmente substituíveis para o funcionamento do comércio de substâncias psicoativas. No entanto, são o grande alvo de prisões por drogas no Brasil, independentemente da quantidade que carregam. Essa prática destaca uma abordagem punitiva que atinge os elos mais vulneráveis e substituíveis da cadeia do tráfico, perpetuando a criminalização e o encarceramento de indivíduos que frequentemente são forçados a essas atividades por falta de alternativas econômicas.

Em conclusão, a recente decisão do STF de descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal é um passo importante, mas insuficiente para resolver os problemas estruturais do sistema de justiça criminal brasileiro. A persistência de critérios subjetivos na diferenciação entre usuários e traficantes, a criminalização secundária de atividades relacionadas ao uso de drogas e a estigmatização de populações marginalizadas demonstram a necessidade urgente de uma reforma mais ampla e profunda. Apenas uma abordagem integrada, que considere as especificidades de cada caso e que promova políticas de redução de danos e alternativas ao encarceramento, poderá efetivamente mitigar os impactos negativos das políticas atuais.

Além disso, é crucial implementar políticas de desencarceramento que busquem mitigar a superlotação e combater práticas abusivas dentro das instituições penitenciárias. Tais políticas não apenas aliviam o sistema carcerário, mas também proporcionam oportunidades de reabilitação e reintegração para os indivíduos encarcerados, contribuindo para a redução das taxas de reincidência criminal. Assim, à medida que avançamos em direção a uma reforma mais justa e equitativa no sistema de justiça criminal, é essencial que as políticas não se limitem à descriminalização, mas também se concentrem na criação de um ambiente mais humano e inclusivo para todos os afetados, especialmente aqueles que são historicamente marginalizados e vulneráveis.

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dez 2, 2025 | Sem categoria | 0 Comentários

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