Em 2016, a Lei nº 13.257/2016, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, foi promulgada visando assegurar a proteção integral de crianças e adolescentes. O que envolvia, necessariamente, garantir os direitos das mães e do exercício da maternidade. Para isso, promoveram mudanças no Código de Processo Penal (CPP) relacionadas às penas de pessoas que fossem mães ou cuidadoras. Em 2018, a Lei nº 13.769 reforçou as mudanças no CPP por meio do julgamento do Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP.
Neste mesmo ano, sete anos atrás, a equipe Justiça Sem Muros, trabalhava na pesquisa MaternidadeSemPrisão. O foco desse estudo era analisar as manifestações de juízes, promotores e defensores nas audiências de custódia, também nas sentenças proferidas nos tribunais de justiça, além das decisões em instâncias superiores, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Durante a pesquisa de campo, inclusive, as pesquisadoras acompanharam as audiências de custódia das mulheres para coleta de dados no Fórum Criminal.
A análise dos processos coletados revelou que a aplicação da prisão domiciliar ainda é marcada por critérios subjetivos e arbitrários.
Juízes e juízas frequentemente recorrem a interpretações restritivas ou situações excepcionalíssimas, negando o direito garantido pelo HC Coletivo e pela Lei nº 13.769/2018.
Alguns dados que provam isso:
- Na análise de audiências de custódia de 201 mulheres, 83% tiveram a prisão domiciliar negada.
- Nos processos de instrução de 200 mulheres, 80% das que atendiam aos critérios não obtiveram esse direito em nenhuma fase do processo.
- Na revisão de 200 decisões do STF e STJ, o número de pedidos negados para prisão domiciliar cai para 38%
Quanto mais concretos os marcadores sociais como raça, classe e gênero, menor a concessão da prisão domiciliar, evidenciando a seletividade penal.
A pesquisa observou que, enquanto nas instâncias superiores a conversão da pena para prisão domiciliar é mais frequente, na base do sistema judiciário, a negativa do direito e a imposição de restrições desproporcionais que inviabilizam o pleno exercício da maternidade se destacavam.
Em paralelo, a equipe do Justiça Sem Muros conduzia outra pesquisa: MulhereSemPrisão: enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal. Esse estudo analisou como o Sistema de Justiça processa, avalia e decide sobre a liberdade ou prisão de mulheres, evidenciando a seletividade penal e a reprodução das desigualdades estruturais. Ou seja, os achados iam ao encontro com os resultados da pesquisa sobre a aplicação da prisão domiciliar.
Outros fatos são importantes para trazer contexto ao tema da prisão domiciliar de mulheres que são mães
- O policiamento na região metropolitana de São Paulo tem um viés ostensivo de defesa do patrimônio e que mulheres negras são os principais alvos de prisões em flagrante.
- No Judiciário, a guerra às drogas se manifesta de forma mais acentuada, resultando em um alto índice de conversões de flagrante em prisões preventivas, especialmente para delitos relacionados ao comércio de substâncias ilícitas.
- O Estado precariza o acesso a serviços públicos essenciais – como saúde, educação, creche, trabalho, moradia e transporte – para a população de baixa renda, especialmente pessoas negras, migrantes, indígenas, jovens, mulheres e LGBTQIAPN+.
- A presença do Estado se impõe pelo sistema penal, reforçando estigmas e hierarquias que mantêm essas pessoas em situação de vulnerabilidade.
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É importante reconhecer que o HC Coletivo representou um marco ao ampliar os pedidos de prisão domiciliar, mas sua implementação encontrou forte resistência dos atores e atrizes do Sistema de Justiça, que ainda recorrem a parâmetros subjetivos para justificar decisões punitivistas. Pensando nisso, o Programa Justiça Sem Muros planeja uma pesquisa para entrevistar mulheres em prisão domiciliar, a fim de compreender as dificuldades concretas para que pudessem exercer a maternidade.
Defender a prisão domiciliar como medida desencarceradora exige que o Sistema de Justiça saiba que ela não poupa das mesmas desigualdades sociais e raciais que levam tantas mulheres à prisão. Uma estrutura punitivista vai além dos muros prisionais e se estende às casas, ruas, serviços públicos, à vida das pessoas impactadas pela punição e a de seus familiares.
Muitas decisões por prisão domiciliar analisadas impõem critérios excessivamente restritivos ou não preveem autorizações básicas para as mulheres, como trabalhar, levar os filhos à escola, acessar assistência médica e benefícios sociais ou até mudar de domicílio em casos de despejo. Ao entrar no espaço doméstico, a disciplina penal impõe novas barreiras à autonomia das mulheres, dificultando o exercício da maternidade, o cuidado consigo mesmas e o desenvolvimento integral de seus filhos, além de gerar impactos negativos na sua saúde e de sua família.
Para evitar que a prisão domiciliar amplie desigualdades, é essencial que esteja vinculada a políticas de proteção social, acesso a direitos fundamentais e assistência em saúde, educação, trabalho e renda.
É necessário também que a aplicação da prisão domiciliar analise o contexto social e prático dessas mulheres ou ainda, que priorize a concessão de medidas mais efetivas que a prisão domiciliar, sempre que previstas em lei, como a liberdade provisória.
Entre 2023 e 2024, o Justiça Sem Muros desenvolveu a pesquisa MulhereSemPrisão: perspectivas e práticas do sistema de justiça sobre a prisão domiciliar para mulheres mães, dessa vez com foco na Lei de Acesso à Informação (LAI) e na realização de entrevistas com atores e atrizes do Sistema de Justiça para compreender suas tomadas de decisão e perspectivas sobre a aplicação da prisão domiciliar.
É possível perceber que , após alguns anos, desde a pesquisa de 2018, as visões sociais negativas e estigmatizantes relacionadas às mulheres, especialmente à sua maternidade, continuam sendo barreiras significativas.
Um aspecto crucial apontado em 40% das entrevistas é a ideia de que a mulher não seria imprescindível para o cuidado de seus filhos. A percepção de uma maternidade irresponsável, que coloca em risco a integridade dos/as filhos/as, é usada como justificativa para negar o direito a prisão domiciliar, com a expectativa de que os cuidados possam ser assumidos por outras figuras familiares, das quais em sua maioria, são também mulheres – avós, tias, sobrinhas, irmãs e primas –, frequentemente reduzindo a mulher em julgamento ao estereótipo de criminosa.
Outra questão é que a comunicação referente às condições estabelecidas para aplicação da prisão domiciliar também é um desafio para elas. No decorrer das entrevistas, a equipe percebeu que não há uma padronização de informações sobre como a as regras da prisão domiciliar devem ocorrer.
Outro ponto crítico é o uso da tornozeleira eletrônica imposta como a principal forma de monitoramento da prisão domiciliar, pois os principais motivos para revogação do direito ocorrem por falhas no funcionamento ou uso do dispositivo (52%), seguidos pela falta de comparecimento à Justiça (50%) e a prática de novos crimes (42%).
Quando se trata de mulheres migrantes, além dos desafios relacionados à política de drogas, essas mulheres enfrentam a ausência de redes de apoio devido à distância de seus países de origem, dificuldades para comprovar residência no país, falta de acesso a políticas públicas adequadas e a xenofobia.
Sete anos após o HC, apesar dos significativos avanços – como permitir que mães fiquem próximas aos seus filhos ou que a gestação seja exercida fora do cárcere –, a prisão domiciliar continua sendo uma forma de encarceramento, com restrições significativas à vida cotidiana.
Os dados obtidos pela LAI confirmam que a aplicação da prisão domiciliar no Brasil é desigual, carecendo de padronização entre os estados. Além disso, a falta de informação sobre esse direito revela falhas estruturais no acesso à Justiça.
Nesse sentido, as recomendações são muitas, mas destacam-se:
- Flexibilização das condições da prisão domiciliar: adotar uma abordagem mais flexível para a concessão de prisão domiciliar, permitindo que as mulheres cumpram suas responsabilidades cotidianas, como ir ao supermercado, levar os/as filhos/filhas à escola e ter acesso a serviços médicos sem a necessidade de justificativas ou autorizações excessivas;
- Garantias de direitos e marcos legais: garantir o cumprimento das garantias previstas na Lei de Execução Penal e em outros marcos legais, como o Marco Legal da Primeira Infância, com fiscalização rigorosa sobre a implementação dessas normas;
- Suporte pós-libertação: articulação com a rede de serviços de assistência social, especialmente no caso de mulheres migrantes ou em situação de vulnerabilidade, para garantir o acolhimento em centros de acolhida e garantir a continuidade do suporte, como a distribuição de alimentos, cuidados médicos e acesso a serviços essenciais.
Confira a fala completa de Amanda Rodrigues, pesquisadora do Justiça Sem Muros, que representou o ITTC no evento “Política sobre drogas e mulheres: encarceramento, proteção e acesso a direitos“, da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública (SENAD/MJSP):
