Carta aberta à Ministra Cármen Lúcia

O Instituto Terra Trabalho e Cidadania – ITTC, organização historicamente dedicada à luta pelos direitos das mulheres e pelo desencarceramento, tem acompanhado com satisfação a crescente implementação pelo sistema de justiça das normativas nacionais e internacionais que determinam que mulheres acusadas ou condenadas pela prática de algum delito devem prioritariamente cumprir medidas alternativas à prisão. Trata-se de uma regra que reconhece a condição de desigualdade de gênero e que entende que a prisão agrava e acentua os processos de discriminação a que as mulheres – especialmente as mulheres negras e pobres – estão sujeitas.

Um dos mecanismos que mais tem ganhado destaque é a prisão domiciliar em substituição à prisão preventiva, prevista pelo Código de Processo Penal, para gestantes e mulheres com filho de até 12 anos incompleto, entre outras hipóteses. Ainda que a maternidade seja uma das condições que possibilita aplicar a prisão domiciliar, não se pode interpretar essa lei como visando exclusivamente à proteção dos direitos da criança. Se é fato que é primordial para uma criança crescer em um ambiente livre, acolhedor, amoroso, arejado – condições que jamais existirão no cárcere -, é igualmente verdade que mulheres mães têm direito de viver a gestação e a maternidade em condições igualmente acolhedoras, com acesso à saúde adequado, apoio de suas redes de solidariedade e liberdade para decidir sobre como cuidar e criar seus filhos e suas filhas. Isso significa que, nesses casos, a alternativa à prisão deve garantir, a um só tempo, os direitos da mulher, da criança e o direito de ambas à convivência familiar.

É nesse contexto que se deve problematizar a equiparação entre a prisão domiciliar para gestantes e mães, e a Lei do Ventre Livre, feita reiteradamente pela ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia, em atividades do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).  Assinada pela Princesa Isabel em 1871, a Lei do Ventre Livre considerava livres todos os filhos e todas as filhas de mulheres escravizadas nascidos a partir da data da lei, enquanto seus pais e mães continuavam escravizados. Essas crianças cresciam sob custódia dos senhores, tendo sua mão de obra explorada, ou então eram entregues ao governo. Ao completarem 21 anos, esses jovens eram marginalizados e viviam em situação de vulnerabilidade.

Fica claro que a Lei do Ventre Livre não protegeu os direitos da criança, não promoveu a convivência familiar e também não garantiu o exercício da maternidade e da paternidade. Muito pelo contrário! Essa lei expressou a resistência à luta pela liberdade de homens e mulheres negras e foi uma ferramenta do projeto capitaneado pela elite latifundiária e branca de prolongamento da escravidão no Brasil, da chamada “transição lenta e gradual” do trabalho escravo para o trabalho livre.

As marcas da escravidão estão estruturalmente em nossa sociedade e ficam evidentes nas altas taxas de homicídios de jovens negros e no encarceramento crescente de homens negros e mulheres negras. Assim, o desencarceramento é uma das ferramentas para fazer frente às consequências do processo abolicionista brasileiro que, além de ter sido extremamente tardio, não garantiu direitos às pessoas negras e tampouco as indenizou pela exploração a que foram submetidas.

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nov 6, 2017 | Artigos | 1 Comentário

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