Desencarceramento feminino: Decisões do STF reafirmam a necessidade de medidas alternativas à prisão para mulheres

Por Raquel da Cruz Lima*

O tema das alternativas à prisão de mulheres foi objeto de duas importantes decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. Em dois Habeas CorpusHC 126107 e HC 126003 – impetrados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo foi questionada a manutenção de mães presas preventivamente por tráfico de drogas na Penitenciária Feminina da Capital (PFC), unidade que possui uma ala materno-infantil, adaptada apenas no ano passado, sem qualquer profissional de saúde – de pediatria ou enfermagem – para o acompanhamento dos bebês e das mães, e com estrutura arquitetônica inadequada, o que inclui celas cujas janelas ficam permanentemente abertas, expondo os bebês a doenças.

Os casos, primeiro, chamam atenção para a problemática da crescente quantidade de mulheres encarceradas por tráfico de drogas. Segundo um relatório do Depen de dezembro de 2011, cerca de 60% das mulheres trancadas nas unidades prisionais brasileiras está presa por tráfico, um crime não violento e que não poderia ser suficiente para fundamentar a manutenção de uma pessoa privada de sua liberdade. A regra do Judiciário brasileiro, porém, tem sido a de manter presas cautelarmente as mulheres acusadas de tráfico mesmo que por quantidades muito pequenas. Essa era, inclusive, a situação de um dos habeas corpus: durante a revista vexatória que foi obrigada a se submeter para visitar o companheiro preso, uma mulher grávida teria sido flagrada com 140g de maconha. A revista vexatória, porém, é um procedimento que não poderia ter sido realizado e que faz com que eventual droga encontrada tenha que ser reconhecida como uma prova ilegítima. Não só a revista vexatória é rechaçada por órgãos internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, mas o próprio estado de São Paulo já reconheceu sua ilegalidade por meio da lei estadual nº 15.552/2014.

A decisão do ministro Ricardo Lewandowski questionou a decretação de prisão cautelar fundada unicamente na gravidade abstrata do delito à sociedade e à saúde pública, sem considerar a inexistência de antecedentes criminais e a possibilidade de estipular medidas cautelares diversas para garantir a persecução penal. Além disso, em ambos os casos sinalizou-se a importância de analisar a condição individual da pessoa acusada, especialmente a gravidez e a presença de bebês. Nesse aspecto, o Ministro levou em consideração as Regras de Bangkok – regras internacionais formuladas pelas Nações Unidas – que determinam que os Estados devem desenvolver opções de medidas e alternativas à prisão preventiva e à pena especificamente voltadas às mulheres infratoras, considerando o histórico de vitimização de diversas mulheres e suas responsabilidades maternas.

É interessante que a existência de um espaço específico para o exercício da maternidade na unidade em que as duas mulheres estavam presas não tenha afastado a concessão da prisão domiciliar. Além das condições estruturais e conjunturais – inclusive o fato de a Penitenciária Feminina da Capital encontrar-se com o número de presas 13% acima de sua capacidade – que justificam os habeas corpus, as decisões também confirmam que uma melhor possibilidade de exercício de maternidade ocorrerá sempre fora da prisão. Por isso, é fundamental que, caso não caiba a liberdade provisória, se aplique a medida cautelar de prisão domiciliar para mulheres grávidas e/ou com bebês, conforme já prevê a legislação.

Apesar de muito importantes, essas duas decisões devem ser consideradas como avanços tímidos em relação à aplicação das Regras de Bangkok, principalmente levando-se em conta que o Brasil participou ativamente de sua formulação. No exercício integral de tais regras, os casos não precisariam chegar ao STF. Em nota para o blog do ITTC, o defensor público coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) Patrick Cacicedo, comentou:

“Celebramos que o Supremo Tribunal Federal reconheça expressamente a necessidade de observância das Regras de Bangkok no tratamento de mulheres acusadas da prática de crimes, ou mesmo condenadas, cumprindo lembrar que as Regras indicam que medidas não privativas de liberdade devem ter prioridade. No entanto, o fato de que a prisão domiciliar foi concedida apenas pelo Supremo e o crescente encarceramento de mulheres revelam a relutância na aplicação das Regras por juízes de 1ª instância e por tribunais locais, como o de São Paulo, realidade que precisa ser revertida com urgência.”

Para o ITTC, a plena compatibilização do ordenamento brasileiro à normativa internacional exige que a aplicação da prisão domiciliar seja estendida, independentemente do regime de cumprimento da pena, àquelas mulheres que têm filhos em tenra idade ou que estejam em fase de amamentação. Medidas não privativas de liberdade e que não gerem o rompimento dos vínculos familiares devem ser sempre priorizadas, oferecendo-se alternativas à prisão provisória de mulheres grávidas ou responsáveis pelos cuidados de seus familiares, como filhos menores, dependentes e parentes com deficiência.

Sugestão de leitura complementar: O porquê de acabar com as prisões femininas (Tradução ITTC)


* Raquel da Cruz Lima é advogada formada pela Faculdade de Direito da USP, Mestre em Direito Internacional pela mesma Universidade, graduanda em História (FFLCH-USP) e pesquisadora do programa Justiça Sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. Contato: raquel.lima@ittc.org.br.

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mar 4, 2015 | Artigos | 0 Comentários

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