ITTC Explica: é possível que a saúde tenha espaço entre grades? 

Por Jessica Mendes, da Comunicação

Todo ano, em 1º de dezembro, celebra-se o Dia Mundial de Luta contra a Aids, uma data para lembrar as vidas perdidas, reafirmar os avanços conquistados e, sobretudo, renovar o compromisso com o enfrentamento do estigma e com a garantia de acesso universal ao cuidado. Essa agenda, que historicamente se constituiu a partir de lutas sociais, respostas comunitárias e afirmação de direitos, deve incluir necessariamente as pessoas privadas de liberdade, que permanecem invisibilizadas nas políticas nacionais de prevenção, diagnóstico e tratamento. Em 2025, em que o tema é “Eliminar as barreiras, transformar a resposta à AIDS”, é preciso considerar: o que significa remover barreiras quando a política pública opera em espaços marcados por violações estruturais. E a resposta à Aids – que seja integral, contínua, baseada em direitos – pode se efetivar em locais onde a lógica da punição regula todas as dimensões da vida?

A Constituição de 1988 reconhece a saúde como direito e a organiza no âmbito do SUS a partir dos princípios da universalidade, integralidade e equidade. A criação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade (PNAISP), em 2014, buscou incorporar a população presa às redes de atenção à saúde, afirmando que o cuidado prestado nos espaços de privação de liberdade deve estar articulado territorialmente e ser garantido com o mesmo padrão de qualidade que se espera fora dos muros. Entretanto, essa promessa constitucional e legal se confronta diariamente com as materialidades do sistema prisional brasileiro. Superlotação, ausência de profissionais, desarticulação entre redes básicas e unidades prisionais, e presença constante da violência institucional fazem com que os princípios do SUS se tornem difíceis de concretizar. Em 2023, o relatório anual do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), que realiza inspeções em espaços de privação de liberdade, constatou agravos de saúde em 100% dos estabelecimentos inspecionados, sejam eles penais, socioeducativos ou de saúde mental.

No caso do HIV/Aids, essas contradições se tornam particularmente expressivas. Em 2022, o Estado de Santa Catarina foi condenado pela morte de um homem privado de liberdade que não recebeu o tratamento adequado no sistema prisional. Como reconheceu a 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça, houve negligência estatal ao não realizar, na entrada ou em momento posterior, o exame clínico que poderia ter identificado precocemente a infecção pelo HIV e permitido um cuidado individualizado. A decisão destaca que o diagnóstico oportuno e o tratamento especializado seriam capazes de neutralizar os efeitos do vírus. Esse caso não é um episódio isolado: ele expõe como a prevenção, o diagnóstico e a continuidade terapêutica dependem de condições que a própria prisão tende a comprometer: acesso regular a serviços, circulação para consultas especializadas, garantia de insumos, estabilidade dos esquemas medicamentosos e acompanhamento longitudinal. A entrada no sistema, atravessada por interrupções, deslocamentos e rotinas desorganizadas, frequentemente quebra tratamentos em curso e impede o início de novas terapias, enquanto a infraestrutura limitada inviabiliza até ações básicas de prevenção e educação em saúde.

Esses obstáculos não são apenas problemas logísticos; expressam a tensão estrutural entre duas racionalidades: a lógica da saúde, orientada pelo cuidado, pela continuidade e pela produção de vínculos, e a lógica penal, orientada pelo controle, pela contenção e pela administração da disciplina. As prisões organizam o tempo e o corpo de forma a dificultar ou impedir demandas de saúde. A possibilidade de realizar exames, receber medicamentos ou acessar especialistas é mediada por decisões de segurança que, muitas vezes, não dialogam com as necessidades clínicas. Assim, não é apenas que o direito à saúde é violado dentro das prisões, é que a própria lógica institucional torna essa violação previsível e reiterada.

A prisão, portanto, não deve ser compreendida apenas como um contexto onde existe vulnerabilidade. Ela produz vulnerabilidade. Ao pautar o tratamento de HIV/Aids, o impacto se amplia porque o cuidado envolve uma temporalidade específica: trata-se de uma política que depende de regularidade, adesão e acompanhamento contínuo, três dimensões profundamente tensionadas pelo cotidiano prisional.

É por isso que falar sobre HIV/Aids no sistema prisional é, necessariamente, falar sobre a própria estrutura do encarceramento. A pergunta não é apenas se a saúde tem espaço entre grades, mas se é possível produzir cuidado em um ambiente que, por definição, fragmenta trajetórias, descontinua tratamentos e subordina direitos fundamentais a dinâmicas de punição. A testagem pode se tornar irregular, o início do tratamento pode atrasar-se, ou nunca acontecer, e a continuidade da terapia é prejudicada. Esses obstáculos não são exceções, mas parte de um padrão que evidencia a incompatibilidade entre o cuidado integral e a privação de liberdade.

A subnotificação e a ausência de dados sistemáticos sobre HIV/Aids no cárcere adicionam uma camada estrutural ao problema do cuidado em saúde. Como apontado em audiência pública na Câmara, a população privada de liberdade muitas vezes sequer aparece de forma regular nos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde, o que impede que o país tenha um retrato minimamente preciso das necessidades dessa parcela da população. Essa invisibilidade estatística não é apenas um déficit técnico, é também política. Sem dados, não há monitoramento consistente, não há planejamento de ações e, sobretudo, não há possibilidade de formular políticas públicas específicas que alcancem pessoas que já vivem em condições de vulnerabilidade. A informação em saúde é a base de qualquer estratégia de prevenção, cuidado e tratamento, e quando ela falha, todo o sistema se torna reativo, operando às cegas e reforçando desigualdades. No contexto prisional, em que a circulação de informações depende de fluxos burocráticos desiguais entre estados, unidades e redes de saúde, a subnotificação contribui para perpetuar um cenário em que as demandas reais permanecem ocultas e as respostas institucionais chegam tarde, fragmentadas ou simplesmente não chegam.

Pensar a resposta ao HIV/Aids nas prisões exige uma abordagem ampla, que ultrapasse os muros e compreenda a saúde em sua inseparável dimensão social. A efetividade do cuidado depende da articulação entre redes básicas, equipes multiprofissionais, políticas de redução de danos e ações contínuas de prevenção, mas depende também de condições materiais mínimas que garantam dignidade. Isso significa reconhecer que a saúde não é apenas o resultado da oferta de serviços, mas da existência de políticas que asseguram mobilidade, informação, acesso a tecnologias de cuidado e respeito à autonomia das pessoas sob custódia.

Ao mesmo tempo, é preciso reafirmar que a saúde não se encerra nos limites da unidade prisional. Pessoas privadas de liberdade têm famílias, vínculos comunitários e trajetórias que se estendem para além do encarceramento. A forma como o Estado organiza, ou desorganiza, o cuidado dentro das prisões produz impacto direto nos territórios. As políticas de saúde, que englobam o enfrentamento ao HIV/Aids, devem, portanto, ser compreendidas a partir do reconhecimento de que a prisão não está isolada do restante da sociedade, mas é um de seus nós estruturais.

É possível que a saúde tenha espaço entre grades? Enquanto a lógica punitiva prevalecer sobre a lógica do cuidado, enquanto a superlotação inviabilizar políticas básicas, enquanto a movimentação e a oferta de serviços forem determinados a partir do punitivismo e não de saúde, o Estado continuará a produzir riscos onde deveria garantir direitos. Reafirmar o compromisso com a luta contra a AIDS significa também reafirmar o compromisso com o cuidado em liberdade e com a construção de políticas públicas que tratem pessoas em cárcere como sujeitos de direitos.

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dez 1, 2025 | Sem categoria | 0 Comentários

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