No Brasil, a luta antimanicomial marcou uma importante virada no modo como a saúde mental é tratada pelo poder público. Com a promulgação da Lei nº 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, consolidou-se um modelo de cuidado centrado nos direitos humanos e na atenção psicossocial. Esse modelo prioriza o acolhimento, com a presença de serviços como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outras formas de cuidado que buscam garantir autonomia, dignidade e a convivência comunitária às pessoas em sofrimento psíquico.
Apesar desse marco legal e das diretrizes previstas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) com a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a realidade tem se mostrado cada vez mais distante dos princípios da reforma. O avanço de instituições como as comunidades terapêuticas (CTs), que recebem recursos públicos mesmo sendo privadas e, majoritariamente, de base religiosa, aponta para um processo de atualização do manicômio sob novas formas.
Comunidades terapêuticas são instituições privadas ou filantrópicas que oferecem acolhimento a pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras substâncias. Em geral, funcionam com regime de residência temporária e foco em abstinência, utilizando atividades coletivas e rotinas estruturadas como parte do tratamento. Embora sejam financiadas em grande parte com recursos públicos, essas instituições não são regulamentadas como equipamentos da rede pública de saúde.
As CTs são frequentemente denunciadas por práticas abusivas, como trabalho forçado, cárcere privado, isolamento, medicalização sem supervisão médica e ausência de garantias mínimas de liberdade e dignidade. A inspeção realizada pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) na comunidade terapêutica “Salve a Si”, no Distrito Federal, em 2024, revelou um cenário preocupante: portas trancadas por fora, quartos usados como isolamento, ausência de assistência médica, trabalho em condições insalubres e internações que descumprem a legislação vigente. Em muitos casos, os acolhidos não possuem meios de sair do local, ficando dependentes da instituição e, por vezes, em situação de privação de liberdade de fato, ainda que não reconhecida como tal.
Esse cenário nos obriga a retomar a pergunta: o que, afinal, caracteriza um manicômio? Podemos dizer que a dinâmica desses espaços foi realmente abolida? Não se trata apenas da presença de grades ou celas, mas da lógica de segregação, do rompimento dos laços sociais e da negação da autonomia. Essa mesma lógica está presente também em outros espaços, como os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTPs).
Os HCTPs são instituições que integram o sistema penal e têm como função aplicar a chamada “medida de segurança”, uma forma de privação de liberdade voltada, em teoria, ao tratamento psiquiátrico de pessoas que, por transtorno mental, foram consideradas incapazes de responder por seus atos. Em vez de pena, essas pessoas são submetidas a internações compulsórias, sujeitas a revisões periódicas, mas sem um limite de tempo máximo claro, o que pode transformar a medida de segurança em uma forma de prisão perpétua, na prática. Ainda hoje, esses hospitais operam à margem da política antimanicomial, com internações prolongadas, diversas denúncias de violações de direitos das pessoas internadas, ausência de projetos terapêuticos personalizados e com reduzida ou nenhuma articulação com a RAPS.
Em 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução nº 487, que estabeleceu a Política Antimanicomial do Poder Judiciário. Essa resolução determinava a interdição parcial de estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico em até seis meses e seu fechamento total em até um ano. No entanto, a execução da resolução foi adiada, e, em junho de 2024, a Procuradoria Geral do Rio de Janeiro obteve liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) contra a norma do CNJ, permitindo a continuidade do funcionamento dos hospitais destinados ao cumprimento das medidas de segurança e internação no estado. Esse impasse evidencia a complexidade do processo de desinstitucionalização e a necessidade de fortalecer a RAPS para garantir o cuidado em liberdade, conforme preconizado pela Lei da Reforma Psiquiátrica.
A própria existência dos HCTPs revela a persistência de uma política que associa o sofrimento mental ao perigo, criminaliza e aposta no encarceramento como forma de controle social. Em vez de cuidado, o que se oferece nessas instituições é o isolamento, prática que contraria o princípio da atenção psicossocial e da reabilitação em liberdade. A inspeção realizada em 2024 pelo MNPCT no Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo, no Distrito Federal, revelou um cenário alarmante, marcado por violações graves de direitos. Longe de qualquer perspectiva de cuidado, os relatos colhidos apontam para uma rotina de violência. Práticas como “mata-leão”, contenções mecânicas prolongadas, com pessoas amarradas por até sete horas, agressões físicas e verbais e ameaças fazem parte do cotidiano das internações, de acordo com relatos. A rotina, descrita por uma pessoa internada como “comer, dormir, tomar banho e tomar remédio”, evidencia a centralidade da medicalização em detrimento de práticas de cuidado. Em meio a esse contexto, um dos internos declarou: “quero me tratar em casa e no CAPS, não em prisão”.
A composição do perfil das pessoas internadas no Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo aponta para marcadores sociais que não podem ser ignorados. Segundo a inspeção realizada no Distrito Federal, 47,7% dos internos tinham até 30 anos de idade, o que reforça a preocupação com os efeitos da institucionalização precoce em trajetórias juvenis. Observou-se ainda que 74,6% eram pessoas negras e 37,3% possuíam apenas o ensino fundamental, evidenciando a seletividade racial e classista que atravessa as práticas de internação psiquiátrica no país.
É nesse ponto que as agendas da saúde mental e da justiça criminal se cruzam. A guerra às drogas, por exemplo, tem funcionado como motor de captura de populações vulnerabilizadas para diferentes dispositivos de privação de liberdade – sejam prisões, hospitais de custódia ou comunidades terapêuticas. O discurso da “recuperação” e do “acolhimento” frequentemente serve para legitimar práticas de exclusão e silenciamento, mascarando violações de direitos sob a lógica da “proteção”.
A liberdade é inegociável para a saúde mental porque o cuidado só pode ser efetivo quando parte do reconhecimento da autonomia e da dignidade da pessoa. Privar alguém de sua liberdade, sobretudo sob justificativas terapêuticas, desconsidera que o sofrimento psíquico está profundamente enraizado em vínculos sociais, afetivos e comunitários, que não podem ser reconstruídos em espaços de segregação. É na relação com o território, com as redes de apoio e com políticas públicas que respeitem a singularidade de cada sujeito que se constrói uma possibilidade real de cuidado. Instituições fechadas, como os hospitais de custódia e as comunidades terapêuticas, rompem esses vínculos e perpetuam a lógica punitiva que trata o sofrimento como perigo. Pautar o cuidado em liberdade é afirmar que saúde mental não se trata de controle, mas de escuta, vínculo e reconstrução de sentidos a partir da vida concreta.
Defender a luta antimanicomial hoje é ir além da crítica aos antigos manicômios. É recusar todas as formas de encarceramento sob o disfarce de tratamento, é afirmar o direito ao cuidado em liberdade, é exigir políticas públicas que respeitem a singularidade de cada pessoa, a sua história e seus vínculos. É, sobretudo, lutar por um Estado que não criminalize o sofrimento, mas que ofereça condições dignas de existência a todas as pessoas.