Racismo e migração no Brasil

Em 18 de dezembro foi comemorado o Dia Internacional dos Migrantes. A data foi instituída por iniciativa da Assembleia Geral das Nações Unidas, visando reforçar e promover os direitos das mais de 272 milhões de pessoas que vivem fora de seus países.

O Brasil costuma ser retratado como um país aberto e receptivo para com a população migrante. Segundo o Relatório Anual do Observatório das Migrações Internacionais – OBMigra 2019, no período de 2011 a 2018 foram registrados mais de 770 mil migrantes internacionais no território brasileiro, sendo a maioria de origem de países do Sul Global. Entre as principais nacionalidades dos migrantes registrados no país na última década, destacam-se bolivianos, haitianos e venezuelanos, estes chegados principalmente a partir de 2015 e sendo a principal nacionalidade dos migrantes chegados em 2018 e 2019

Contudo, os dados disponíveis revelam pouco sobre marcadores sociais da diferença, como raça, idade e orientação sexual entre a população migrante, e como eles contribuem para que determinados grupos sejam mais ou menos aceitos na sociedade brasileira em relação a outros. Apesar da imagem supostamente acolhedora, pesquisadores como Alex André Vagem e Gustavo Barreto apontam que o racismo contra migrantes é recorrente no Brasil e que a aceitação de migrantes pela sociedade brasileira é seletiva

Considerando que o racismo estrutura a sociedade brasileira, e portanto permeia todas as relações sociais e institucionais, é importante pontuar que a relação entre racismo e migração não é um fenômeno recente decorrente do aumento no número de migrantes que, no contexto brasileiro, são racializados como negros, vindos principalmente do Haiti e de países do continente africano, como Angola, Gana e Senegal. 

Apesar da atual Lei de Migração (13.445/2017) adotar uma perspectiva em defesa dos direitos humanos, incluindo o combate à discriminação, racismo e xenofobia, trata-se de uma iniciativa recente começou a ser discutida em 2013 e foi sancionada em 2017 que não apaga o passado racista das políticas migratórias adotadas pelo Brasil no século XIX e início do século XX. 

Tais políticas são resgatadas no artigo A mão que afaga é a mesma que apedreja: Direito, imigração e a perpetuação do racismo estrutural no Brasil, da pesquisadora e professora universitária Karine de Souza Silva. A autora analisa as políticas migratórias durante o império e início da república e como elas privilegiam a vinda de migrantes europeus e excluía ou proibia a migração de pessoas negras, em especial aquelas vindas de países do continente africano, e também de migrantes de origem asiática. 

Essas políticas foram adotadas justamente em um período no qual o país caminhava para a abolição da escravatura. Após séculos de migração forçada de pessoas negras escravizadas vindas da África, com a adoção paulatina de leis abolicionistas o Estado brasileiro passou a barrar a migração voluntária de pessoas dessa região. Além disso, o processo de abolição não foi seguido por políticas ou incentivos para a reintegração social e econômica daqueles que foram vítimas dos processos de migração forçada e escravidão. É importante ressaltar essas questões pois, como exposto adiante, as políticas de incentivo à migração europeia estavam associadas a um projeto de exclusão e genocídio da população negra.

Segundo o artigo, os dois grupos de migrantes recebiam tratamentos distintos do Estado brasileiro. Enquanto os brancos foram contemplados com políticas que visavam integrar a família no Brasil e garantir a dignidade humana, como direito ao salário, educação, proteção ao núcleo familiar etc, aos negros eram destinadas leis de caráter punitivo, depreciação da identidade e da cultura, impedimento à formação do núcleo familiar, perseguição de lideranças e restrições ao direito de reunião. 

Por trás dessas políticas migratórias estavam ideologias de embranquecimento da população através da miscigenação, baseadas no racismo na época tido como científico de que pessoas negras eram biológica e culturalmente inferiores em relação às brancas, e assim o desenvolvimento da nação dependeria da presença de migrantes europeus. De acordo com o intelectual Abdias Nascimento, citado por Silva (2020), as legislações que visavam o embranquecimento da população foram uma estratégia de um “genocídio institucionalizado, sistemático, embora silencioso” da população negra no Brasil.

Apesar da revogação de leis expressamente racistas, sejam elas sobre políticas migratórias ou não, o racismo não é uma questão superada na sociedade brasileira, ainda que se manifeste de formas diferentes àquelas do século XIX e início do século XX. Não obstante os pontos positivos da nova Lei de Migração, Silva (2020) aponta que ela peca em alguns momentos por “não assumir que os que aqui chegam partem de lugares geográficos, sociais e raciais diferentes”, e que migrantes do Norte Global são lidos e acolhidos de forma diferentes que migrantes racializados como não brancos¹. Ainda, segundo a autora: 

“A raça e suas intersecções com o gênero e sexualidades dificultam a entrada e permanência e vulnerabilizam a condição de existência das vidas negras (…). Fato é que, até hoje, mesmo com a vigência da nova Lei de Migração, são esses coletivos que têm mais dificuldades de regularização migratória e acesso a direitos humanos no Brasil”. (SILVA, 2020, p.30).

Essa constatação vai de encontro com outras pesquisas que identificam o tratamento diferenciado recebido por migrantes brancos e não brancos no Brasil. Na dissertação de mestrado “Relatos de imigrantes africanos na cidade de São Paulo sobre preconceitos”, o pesquisador Marcio Farias identifica casos de racismo e discriminação sofridos migrantes de países africanos que trabalham na cidade de São Paulo. 

Segundo Marcio, migrantes africanos costumam ser colocados em condições precárias de trabalho, independentemente de sua formação. Outro ponto identificado pelo autor a partir dos relatos de migrantes africanos é a complexidade dessas identidades, não havendo necessariamente uma identidade homogênea entre migrantes de países africanos, mas sim organizações em grupos a partir de nacionalidades e etnias. 

Um dos entrevistados pelo pesquisador, por exemplo, se entende como um homem negro no Brasil, mas afirma que em seu país seria considerado um homem branco. Além disso, o entrevistado também relata ter dificuldades para identificar se é discriminado por ser negro ou africano, pois na sua visão homens negros estadunidenses receberiam um tratamento diferente de homens negros de países africanos no Brasil. 

A diferença de tratamento entre migrantes brancos e não brancos se dá não só nas relações cotidianas, mas também na forma como migrantes são retratados na mídia, por exemplo. O pesquisador Gustavo Barreto constata que migrantes europeus costumam ser retratados na mídia a partir de suas culturas e contribuições ao Brasil. Entretanto, o mesmo não é dito sobre migrantes bolivianos e haitianos, que apesar de também contribuírem positivamente ao país em termos econômicos e/ou culturais, geralmente aparecem na imprensa associados a problemas ou crises. 

Para além do racismo estrutural e da violência sistemática promovida pelo Estado brasileiro contra as populações negra e indígena e que portanto também atingem pessoas migrantes racializadas como pertencentes a esses grupos migrantes de origem asiática também estão sujeitos/as a diversas formas de discriminação no Brasil. 

A pandemia de Covid-19 foi seguida por diversos ataques racistas e xenofóbicos direcionados a pessoas de origem asiática no Brasil e no mundo. Contudo, apesar da intensificação no contexto de pandemia, é importante ressaltar que o racismo e preconceito contra migrantes de origem asiática e seus descendentes também não é algo recente no contexto brasileiro, ainda que possam assumir formas distintas do racismo e preconceito sofridos por migrantes de origem africana, por exemplo.

O racismo e a xenofobia sofridos pela população migrante não são exclusividade do Brasil. Segundo relatório elaborado pela Organização Internacional do Trabalho, Organização Internacional para as Migrações e pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, as discussões sobre política migratória dificilmente são separáveis de uma discussão acerca das relações raciais dentro das comunidades anfitriãs. Ainda segundo o documento, hostilidades contra populações migrantes podem ser reflexos de uma negação a tendências racistas mais profundas dentro dos países que recepcionam migrantes. 

Pensando no contexto brasileiro, a revogação do Estatuto do Estrangeiro e a aprovação da Nova Lei de Migração foram passos importantes para o reconhecimento de pessoas migrantes enquanto sujeito de direitos, e não mais como o “outro” que poderia colocar em risco a segurança nacional. Todavia, não são raras manifestações que negam a existência de racismo no país, seja contra a população nacional ou migrante, insistindo em uma suposta “democracia racial”. Nesse sentido, um dos desafios para organizações e atores que lidam com a questão migratória é interseccionar essa temática com a questão racial, pois consideramos que tal intersecção é fundamental para o acolhimento adequado e a efetivação de direitos da população migrante no país. 

Inserir a questão racial como um dos pontos centrais para entender a integração e o acesso a direitos de migrantes internacionais no país não exclui a importância de outros marcadores, como gênero, sexualidade, nacionalidade e etnia. Entretanto, chamamos atenção para a questão racial pois ainda prevalece o mito de que o Brasil é um país amigável e acolhedor com todos os migrantes, e que as manifestações de preconceito, racismo ou xenofobia são exceções, ocultando assim o racismo estrutural no país e como ele exclui ou restringe direitos de pessoas migrantes não brancas.

Gabriela Menezes, pesquisadora da equipe do Banco de Dados do ITTC


¹ Acrescentamos, ainda, que essa diferenciação de tratamento pode se dar não só entre pessoas do Norte e do Sul Global, mas também entre migrantes de um mesmo eixo, privilegiando a integração de pessoas lidas como brancas e excluindo ou limitando a integração de pessoas lidas como negras no contexto brasileiro, ainda que ambas sejam de países do Sul global.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

SILVA, Karine S. A mão que afaga é a mesma que apedreja: Direito, imigração e a perpetuação do racismo estrutural no Brasil. Revista Mbote, v.1, n.1, p. 22-41, 2020.

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dez 21, 2020 | Artigos | 0 Comentários

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