Rede Justiça Criminal: Nota técnica contra o PLC 101/2015

As condutas que o PLC 101/2015 tipifica distinguem-se de outros tipos penais pela finalidade específica de provocar terror e, a depender da redação em tela, de algumas motivações específicas. Precisamente aí reside o problema: a manifestação objetiva de um crime comum e do crime de terrorismo é a mesma, ou seja, sequestro e sequestro com a finalidade de provocar terror distinguem-se somente pela disposição subjetiva dos agentes, que caberá ao Estado apurar. Entretanto, o terror, a vontade de provocá-lo e a sua realização são impossíveis de aferir objetivamente. Trata-se de um estado subjetivo que decorre da sensação de perigo, real ou ilusória, e, num contexto em que veículos de comunicação em massa repercutem fatos isolados, ampliando-lhes a dimensão, o resultado é dificilmente reputável ao agente.

Elementares normativas como “provocar o terror” tornam a norma penal indeterminada e inviabilizam qualquer segurança jurídica aos cidadãos e cidadãs presentes em manifestações. Nessa apreciação, ademais, tendem a ser penalmente capturados grupos vulneráveis e politicamente dissidentes. Análoga a essa é, por exemplo, a história da condenação chilena diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos. E o Brasil põe-se na mesma trajetória. Aumento desproporcional de penas e flexibilização do processo penal são consequências facilmente antecipáveis, a partir dos textos hoje em disputa e em vias de aprovação no Congresso Nacional. Não há nenhum incremento na capacidade preventiva e repressiva do Estado brasileiro, hoje já plenamente apto a lidar com o fenômeno do terrorismo e, ainda mais claramente, de seu financiamento.

 

I – Quanto ao relatório do Senador Romero Jucá

Apresentado em 29 de setembro de 2015, o relatório do Senador Romero Jucá opina pela aprovação do Projeto de Lei da Câmara 101/2015 e pela rejeição das Emendas nº 1 a 14, mantendo o texto nos termos aprovados pela Câmara dos Deputados.

O texto do relatório, embora reconheça a dificuldade relacionada à tipificação do crime de terrorismo, argumenta a relevância e a urgência da aprovação do projeto, tendo em vista o ganho em importância do fenômeno terrorista na conjuntura internacional, os compromissos internacionais de cooperação com a segurança mundial assumidos pelo Brasil e a ameaça de sanção no contexto da reunião plenária do Gafi [Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo].

O discurso incorporado ao relatório é frequentemente mobilizado em defesa da tipificação de atos terroristas, assumindo-a como necessária, oportuna e inescapável. Resta justificado assim que um dos projetos mais controversos e de grande potencial cerceatório tenha tramitado em somente três meses no Congresso Nacional. Esse discurso, no entanto, não é livre de questionamentos.

Embora o Gafi tenha crescido em influência juntos aos membros da comunidade internacional e suas recomendações tenham se incorporado ao ordenamento de alguns países, variadas organizações, aí incluída a Plataforma da Sociedade Civil junto ao Gafi, criticam e apontam reiteradamente o impacto perverso de suas orientações regulatórias sobre a sociedade organizada.

Uma definição ampla de terrorismo e mesmo de financiamento ao terrorismo – escopo fundamental do Grupo – ameaçam atividades humanas contempladas na abrangência protetiva das liberdades fundamentais de expressão e associação. Por exemplo, aponta a Plataforma de Organizações que a definição daquilo que é um discurso extremista é inevitavelmente ampla e propícia à censura da dissidência, que organizações não lucrativas têm enfrentado restrições legais relacionadas ao seu financiamento e que defensores de direitos humanos têm sido perseguidos criminalmente.

Se o Gafi se excede e falha na atenção à repercussão de suas recomendações e tipologias sobre a sociedade civil, cabe ao Congresso Nacional fazê-lo. Por outro lado, é preciso insistir que o Brasil é um país que já ostenta plena capacidade de cooperação com a segurança mundial. Como apontado em outra nota da Rede Justiça Criminal, a Lei de Organizações Criminosas habilita o Brasil à prevenção e à repressão do crime de financiamento ao terrorismo, bem como à investigação e punição de organizações criminosas, inclusive terroristas.

Quanto à manutenção do texto aprovado pela Câmara e à rejeição de todas as emendas apresentadas, o relatório falha em reconhecer a desproporcionalidade na cominação de penas aos tipos; falha em notar a amplitude na definição de condutas típicas, que chegam a abranger sob ato terrorista o dano a bem privado; falha em reconhecer que a previsão de cumprimento de pena em estabelecimento de segurança máxima fere o princípio da individualização da pena; falha ao insistir na antecipação da tutela penal por meio da criminalização de atos preparatórios com altas penas cominadas. Os erros, pois, vão da recomendação de aprovação de um projeto nocivo à desconsideração de medidas que mitigam, ainda que insuficientemente, a gravidade e a desproporcionalidade das repercussões penais para os indivíduos eventualmente alcançados pelas previsões do projeto.

II – Quanto ao substitutivo do Senador Aloysio Nunes

O substitutivo do Senador Aloysio Nunes tampouco constitui alternativa. Padece de todos os vícios acima mencionados e retrocede na autolimitação do Estado em relação à atividade contestatória de movimentos sociais reivindicatórios e outras atividades de protesto. O substitutivo, assim como o texto inicial do PL 2016/2015, inclui a motivação ideológica entre os elementos típicos do terrorismo.

No entanto, ao contrário da xenofobia, da discriminação ou preconceito, que são atitudes socialmente reprováveis e, efetivamente, reprovadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, a expressão ideológica é direito fundamental. Não pode constituir, por isso mesmo, elemento a ensejar especial reprovação, quando do eventual cometimento de delitos. Deve-se punir o delito, não a ideologia.

Assim determina a Constituição Federal, que tem como um de seus fundamentos o pluralismo político (art. 1º, V) e protege o direito à convicção política (art. 5º, VIII) como direito fundamental e, por consequência, inviolável pressuposto da república (art. 60, § 4º, IV). O Brasil, ademais, ratificou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e, fazendo-o, comprometeu-se internacionalmente a não molestar ninguém por suas opiniões (art. 19, 1, do Pacto), a garantir a todos os cidadãos e cidadãs o direito e a possibilidade, sem qualquer forma de discriminação e sem restrições infundadas, de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos (art. 25).

Além disso, o substitutivo exclui a única previsão minimamente capaz de proteger o exercício democrático da expressão e da associação. A excludente de tipicidade, constante do artigo 2º, parágrafo 2º, do texto atual, orienta-se, no âmbito da tipificação do terrorismo, à autolimitação do Estado em relação a movimentos sociais e atividades de protesto. Suprimi-la é sujeitar os cidadãos brasileiros à criminalização da atividade política e à expansão do controle penal a condutas que, sob a perspectiva do direito penal garantista, não são delitos, mas expressão do exercício democrático.

Lutas e manifestações de movimentos sociais são motivadas pela elaboração política de experiências de privação e falta de reconhecimento. São e devem permanecer resguardadas pela Constituição Federal e pelo Sistema Internacional. Inclusive, a Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo, em seu artigo 15, é clara ao estabelecer que as medidas adotadas pelos Estados Partes em sua decorrência devem respeitar plenamente o Estado de Direito, os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Nada em seu texto poderá ser interpretado como pretexto para a desconsideração de outros direitos e obrigações dos Estados, nos termos do direito internacional, em particular a Carta das Nações Unidas, a Carta da Organização dos Estados Americanos, o direito internacional humanitário, o direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional dos refugiados.


III – Sinais de abuso pelo Estado brasileiro

A experiência brasileira recente é farta em exemplos desconsideração de normas protetivas e má utilização de tipos penais alterados pela lei de organizações criminosas, como a associação criminosa, e novos tipos, como a constituição de milícia privada (art. 288-A do Código Penal), instrumentalizados na criminalização de movimentos, intimidação de lideranças políticas e violação de direitos humanos, como a liberdade de expressão e de associação. O PLC 101/2015 tem todos os elementos para representar um agravamento desse quadro e deve, por isso, ser prontamente arquivado.

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out 26, 2015 | Artigos | 0 Comentários

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