Segurança pública não se faz com sangue 

A operação mais letal da história do Rio de Janeiro, a Operação Contenção, nesta terça (28), expõe o fracasso e a violência estrutural da política de segurança no estado e coloca a cidade em estado de terror.

A chacina que se desenrola desde as primeiras horas desta terça-feira (28), nos complexos de favelas do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, inscreve-se em um longo e trágico histórico de matanças cometidas por forças policiais no estado — apresentadas, equivocadamente, como política pública. Até o momento, já são 64 pessoas mortas em uma única operação — a mais letal da história do Rio de Janeiro. 

A perda massiva de vidas reitera o padrão de letalidade que caracteriza a gestão de Cláudio Castro, governador que detém o título de responsável por quatro das cinco operações mais letais da história do Rio de Janeiro, superando seus próprios recordes anteriores registrados no Jacarezinho (2021) e na Vila Cruzeiro (2022). O que o governador Cláudio Castro classificou hoje como a maior operação da história do Rio de Janeiro é, na verdade, uma matança produzida pelo Estado brasileiro. 

Ao longo dos quase 40 anos de vigência da Constituição Federal, o que se viu nas favelas fluminenses foi a consolidação de uma política de segurança baseada no uso da força e da morte, travestida de “guerra” ou “resistência à criminalidade”. Trata-se de uma atuação seletiva, dirigida contra populações negras e empobrecidas, que tem no sangue seu instrumento de controle e dominação.

Não há nela elementos que efetivamente reduzam o poderio das facções criminosas nos territórios. Pelo contrário: essas ações aprofundam a insegurança e o medo, instalam o pânico, interrompem o cotidiano de milhares de famílias, impedem crianças de ir à escola e impõem o terror como expressão de poder estatal. A morte não pode ser tratada como política pública.

Esse ciclo de violência não é acidental: ele decorre de uma estratégia deliberada que privilegia o confronto armado em detrimento de qualquer compromisso com a vida e com a legalidade. Durante seu pronunciamento, o governador ainda tentou responsabilizar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 635 — a ADPF das Favelas — e as organizações da sociedade civil que atuaram por sua implementação, pela letalidade da operação. Ao fazer isso, ataca o controle das polícias, papel constitucionalmente atribuído ao Ministério Público, e busca deslegitimar o trabalho das entidades que lutam pelo direito à vida nas favelas.

Castro ainda atuou politicamente para esvaziar a ADPF 976 no Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de liberar as forças de segurança de obrigações legais como planejamento prévio e preservação de vidas.

O Manual sobre o Uso da Força e Armas de Fogo por Agentes da Segurança Pública, publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), estabelece princípios fundamentais que devem orientar toda ação policial: legalidade, necessidade, proporcionalidade, precaução e responsabilidade. As operações conduzidas pelo Estado do Rio de Janeiro violam frontalmente todos esses parâmetros, configurando uma prática sistemática de uso ilegítimo da força letal.

O Brasil e o Estado do Rio de Janeiro já foram reiteradamente advertidos pela Organização das Nações Unidas e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o caráter racista e discriminatório da política de “guerra às drogas”, que define quem morre e quem vive nas favelas e periferias. O Estado fluminense acumula duas condenações na Corte Interamericana de Direitos Humanos — pelas chacinas de Acari (1990) e Nova Brasília (1994 e 1995) — e segue reproduzindo o mesmo padrão de violência. Nos últimos dez anos (2014–2024), 5.421 jovens de até 29 anos foram mortos em intervenções policiais, segundo o Instituto de Segurança Pública.

Desde os anos 1990, sucessivos governos ignoram propostas de segurança pública orientadas pela prevenção, pela redução da violência e pelo fortalecimento de direitos. O investimento segue voltado ao confronto, com resultados trágicos e repetidos: mais mortes, mais dor e nenhuma segurança. 

O que se testemunha hoje é o colapso de qualquer compromisso com a legalidade e os direitos humanos: o Estado substitui a segurança pública baseada em direitos por ações militares de grande escala. Sob o pretexto da “guerra às drogas”, instala-se um estado de insegurança permanente, voltado contra a população negra e pobre das favelas.

Não há justificativa para que uma política estatal, supostamente voltada à proteção da sociedade, continue a ser conduzida a partir do derramamento de sangue. A segurança pública deve garantir direitos, não violá-los. As moradoras e os moradores das favelas têm direito à vida, à integridade física e à paz — e isso não é negociável.

Rio de Janeiro (RJ), 28 de outubro de 2025.

  1. Anistia Internacional Brasil
  2. Justiça Global
  3. Centro de Estudos de Segurança e Cidadania — CESeC
  4. Conectas Direitos Humanos
  5. Centro pela Justiça e o Direito Internacional — CEJIL
  6. Instituto Papo Reto do Complexo do Alemão
  7. Movimentos
  8. Redes da Maré
  9. Instituto de Estudos da Religião — ISER
  10. Observatório de Favelas
  11. Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin
  12. Movimento Unidos dos Camelôs
  13. Grupo Tortura Nunca Mais — RJ
  14. Fórum Popular de Segurança Pública do Rio de Janeiro
  15. CIDADES – Núcleo de Pesquisa Urbana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
  16. Instituto de Defensores de Direitos Humanos — DDH
  17. Iniciativa Direito Memória e Justiça Racial 
  18. Frente Estadual pelo Desencarceramento — RJ
  19. Instituto Terra Trabalho e Cidadania — ITTC
  20. Associação de Amigos/as e Familiares de Pessoas Presas e Internos/as da Fundação Casa — Amparar
  21. Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares — GAJOP
  22. Instituto Sou da Paz
  23. Rede Justiça Criminal
  24. Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional — FASE RJ 
  25. Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares — RENAP RJ
  26. Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
  27. Casa Fluminense
  28. Plataforma Justa
  29. Núcleo de Estudos e Pesquisa Guerreiro Ramos – Negra-UFF 
  30. Comissão Arns
  31. Educafro
  32. Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades — CEERT 
  33. Centro Gaspar Garcia de DHs
  34. CDH Sapopemba
  35. Coalizão pela Socioeducação 
  36. Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social — CENDHEC
  37. Criola
  38. Associação Brasileira de Imprensa — ABI
  39. Decodifica

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out 29, 2025 | Sem categoria | 0 Comentários

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