O Brasil, segundo estimativas do Ministério da Saúde, pode chegar ao pico infeccioso do Covid-19 neste mês de abril. Ausente a perspectiva de uma cura para a doença em um futuro próximo, a atuação majoritária dos governos estaduais é de colaborar com a política de distanciamento social e reforçar a prática de hábitos de higiene e cuidado – como a necessidade de permanecer em casa, lavar as mãos por vinte segundos, usar máscaras ao sair e evitar aglomerações. No entanto, se as medidas de proteção são possíveis para uma fração da população, para outra é uma realidade impraticável. Caso das pessoas em privação de liberdade e em situação de rua.
A SITUAÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL
Antes e durante o curso dessa pandemia, o ITTC tem exercido um papel denunciativo das condições calamitosas do sistema prisional brasileiro. A partir de relatos e extensa documentação, revela-se que a superlotação e o acesso precário a itens e hábitos de higiene são elementos definidores da estrutura carcerária. Em uma penitenciária do Pará, por exemplo, inseridos em um ambiente com temperaturas que chegavam aos 40 graus célsius, pessoas presas tinham contato direto com o esgoto e bebiam água da privada. Essa denúncia, que havia sido feita a partir de um dossiê do Mecanismo de Combate à Tortura, ilustra uma realidade distante das recomendações mínimas de proteção para a pandemia do novo coronavírus.
A atuação do ITTC tem sido na direção de apoiar e pressionar os poderes públicos na direção do desencarceramento, considerando que esse seja o caminho efetivo para evitar que o vírus se dissemine nas redes prisionais. Mas, se o desencarceramento desponta como uma medida de efeito imediato, ainda faltam diretrizes de como cuidar dos libertos, tendo em vista especialmente aqueles que não possuem endereço, compondo o crescente montante da população em situação de rua.
A QUESTÃO DA MORADIA
Na teoria, a moradia é um direito garantido pela Constituição Federal, porém, na prática, o déficit habitacional urbano, o encarecimento de terrenos centrais, a segregação socioespacial, o crescimento da informalidade e o desemprego têm contribuído para o aumento da população em situação de rua. Em cidades como São Paulo, onde houve um aumento de 53% deste grupo nos últimos 4 anos, tornaram-se cada vez mais corriqueiras as cenas de famílias disputando proteção sob marquises, praças e viadutos. Para essa população, em grande semelhança com o que ocorre dentro dos presídios, falta higiene, alimento e segurança. É fácil, então, imaginar o potencial dano que o coronavírus pode assumir nas ruas brasileiras, principalmente dos centros urbanos do sudeste, alastrando-se por uma população invisibilizada.
Frente a esse problema, os poderes municipais têm agido com pouca eficácia, consequência de uma política urbana ainda carregada de grande estigmatização e descaso. Nesse sentido, a pandemia explicitou a carência do aparato de assistência social nas cidades, locais em que crescem os números da população em situação de rua. Tendo ainda São Paulo como exemplo, a insuficiência deste aparato se verifica também pela lotação de abrigos, longas filas para o recebimento de alimentos e artigos de higiene e remodelação dos centros de atendimento. Não bastasse a saturação da infraestrutura existente, depara-se ainda com a ameaça de fechamento de equipamentos sociais em regiões vulneráveis da cidade.
O comportamento até agora da cidade de São Paulo tem sido o oposto do observado por cidades como Londres, Praga e Los Angeles (com população em situação de rua de 130 mil), onde há iniciativas sociais no sentido de proteção da população vulnerável, como a reserva de quartos de hotéis por até 12 semanas. Vale salientar que essas cidades possuem um déficit habitacional muito menor do que o da capital paulista, cuja cifra é de 1.8 milhão de pessoas.
Entre tantos efeitos negativos, a chegada do coronavírus assinala uma oportunidade de reflexão sobre o acesso precário à higiene individual para pessoas em situação de privação de liberdade e a ausência de moradia para todos e todas. Considerada a ameaça do novo coronavírus, os dados são preocupantes: o Brasil possui 11,4 milhões de habitantes em aglomerados subnormais e 48% da população total não possui saneamento básico. São estatísticas que, se somadas, dão o desenho de um cenário preocupante que pode se consumar em breve. Sem que haja um esforço sistemático para mudar a realidade desse ‘Brasil esquecido’, os mesmos erros continuarão a ser cometidos e pagos com vidas.
Por Jorge Fofano Junior