Por Gabriela Cotta e Heloisa Freitas
Na década de 1990, a pesquisadora Kimberlé Crenshaw citou a mulher (cis e trans) migrante como exemplo de interseccionalidade, na qual diferentes formas de opressão se relacionam. Submetidas a uma sobreposição de privações, as mulheres migrantes refugiadas acumulam ainda mais desvantagens.
Segundo a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e pela legislação brasileira, o refúgio se dá pelo o fato de a pessoa estar fugindo de conflitos e ameaças a sua integridade. Os motivos são diversos: raça, religião, nacionalidade, grupo social, opinião política.
Mulheres trans refugiadas, por sua vez, encontram um número expressivamente maior de adversidades no processo do deslocamento forçado e mais barreiras para inclusão no país de acolhida.
E quem está em conflito com a lei?
Pessoas migrantes com perfil de refúgio criminalizadas por um delito no Brasil enfrentam uma dupla penalização, ou seja, são submetidas não apenas ao cumprimento de uma pena em restrição de liberdade, mas, posteriormente, também sofrem o não reconhecimento de seu status de refugiadas. Isso porque,na legislação brasileira de refúgio (Lei nº 9.474 de 22 de julho de 19971), pessoas com antecedentes criminais relacionados ao tráfico de drogas, por exemplo, estão excluídas da condição de refugiadas, segundo o Art. 3º.
Essa é uma questão complexa, que demanda um olhar sensível, principalmente nos casos em que podem existir interligações entre tráfico de pessoas e narcotráfico. A razão é que o tráfico de pessoas que força o cometimento de delitos não está previsto expressamente na legislação nacional, porém, a partir da longa experiência no atendimento de mulheres migrantes em conflito com a lei, o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) percebe a presença de elementos de tráfico humano em muitos casos. Uso da força, coação, engano e abuso de situação de vulnerabilidade são comuns em trajetórias de migrantes condenadas por transportar drogas. Além disso, entre as possíveis vítimas identificadas pelo ITTC, há prevalência de históricos de desestrutura familiar, violência doméstica e abusos em seus países de origem. São pessoas migrantes que, distante de suas redes de proteção e desconhecendo a língua, as leis e seus direitos, tornam-se ainda mais vulneráveis à ação e à violência de organizações criminosas que fazem uso do tráfico humano para a viabilização do tráfico de drogas.
Outra consequência severa que mulheres migrantes condenadas por crimes enfrentam é a expulsão do Brasil, país onde residiram e cumpriram sua pena. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) dita que alguns crimes levam à adoção dessa medida, tendo como única excepcionalidade vínculos afetivos e dependência econômica de núcleo familiar brasileiro, requisito no qual muitas mulheres sobreviventes do cárcere não se encaixam.
A soma de violências na condição de ser LGBTQIA+
Pessoas LGBTQIA+ podem ser reconhecidas como parte de grupos sociais específicos2 por conta da perseguição com base na orientação sexual e/ou identidade de gênero, além de serem alvos da discriminação, rejeição, exclusão e violência em seus países, comunidades e famílias. Tal violência pode ser perpetrada pelo Estado ou, ainda, por atores não estatais, como grupos armados, organizações criminosas, entre outros. Mas quais são os direitos das pessoas LGBTQIA+ que estão privadas de liberdade? E quando são refugiadas?
Primeiramente, muitas pessoas trans são alocadas em prisões distintas de seu gênero. Mulheres migrantes trans, por exemplo, usualmente são alocadas em penitenciárias masculinas, local onde sofrem grande vulnerabilidade e exposição, experienciando muitas vezes diversas violações de direitos como desrespeito à identidade de gênero e ao nome social, falta de acesso à terapias hormonais e à atenção médica específica (ainda que dos garantidos pelo SUS no artigo 2º da Portaria nº 2.803 do Ministério da Saúde), violência sexual, e degradação de sua identidade e autoestima.
Mesmo diante dessas violências institucionais no país, uma mulher trans sobrevivente do sistema prisional e atendida pelo ITTC relata que, ao permanecer no Brasil, se sente protegida e por isso solicitou refúgio aqui. “Em meu país, eu já não era aceita como uma mulher trans. Agora, como trans e egressa da prisão, me veem como uma ameaça, e acabo sendo excluída por todos, desde o governo até os meus próprios irmãos.” Além disso, ela menciona a situação de guerra às drogas existente no seu país de origem. “Enquanto mulher trans e tendo sido presa por tráfico, sou exatamente o perfil que eles buscam pra matar.” Quando questionada sobre a dependência de sua regularização migratória definitiva para não sofrer expulsão do Brasil, menciona que hoje não tem escolha. “Lá, eu não teria uma segunda chance. No Brasil, tenho. Por isso, sinto que o refúgio é importante para as mulheres trans lutarem contra a raiz da violência.”
Ela enfrentou inúmeras formas de violência institucional na prisão masculina em que foi alocada, enfrentando a divisão genitalista e a precariedade do sistema prisional brasileiro, além dos efeitos do descumprimento da Resolução de 2014 do Conselho Nacional de Política criminal e Penitenciária (CNPCP), que determina que pessoas transgênero, tanto homens quanto mulheres, deveriam ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas. Atualmente, o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ (CNLGBTQIA+) e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) aprovaram uma resolução que estabelece novas regras de acolhimento para integrantes da comunidade privada de liberdade, como a escolha da ala masculina ou feminina para cumprir a pena e o uso do nome social por autodeclaração.
Hoje, essa mulher atendida pelo ITTC aguarda a decisão de sua solicitação de refúgio no Brasil, que pode ser determinante para conter a sua expulsão do país e o retorno compulsório para um local onde encontra-se em risco.
Apesar do perfil dessa mulher trans, migrante, sobrevivente do cárcere e solicitante de refúgio, por vezes, encontrar amparo na legislação brasileira, é imprescindível se atentar ao fato de que, pelo 13° ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. O levantamento3 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) reflete um aumento de mortes em 2023, relatando que o Brasil tem um assassinato de pessoa trans a cada três dias, ou seja, ao menos 145 pessoas trans foram mortas no país no último ano. Além disso, a transfobia no sistema carcerário é gritante, assustadoramente cruel, em meio a um projeto violento contra essas pessoas.
A falta de dados oficiais sobre pessoas trans no país gera um desafio na criação de políticas públicas, visto que não há um censo nacional ou outras pesquisas que identifiquem em números absolutos tais pessoas. Não por acaso, a ocultação desses dados é vantajosa para algumas categorias governamentais.
É urgente e necessário falar das mulheres migrantes trans e sobreviventes do sistema prisional como sujeitos de direito, e não mais como vítimas de estruturas patriarcais e institucionais que, em nome de sua soberania, aprofundam desigualdades e vulnerabilidades de grupos específicos.
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A Lei de Refúgio no Brasil (Lei nº 9.474/1997 de 22 de julho de 1997), seguindo a definição da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, estabelece os critérios para a concessão de refúgio e assegura os direitos dos solicitantes e refugiados no país, garantindo que qualquer pessoa que tenha sofrido perseguição ou tenha um fundado temor de perseguição possa solicitar refúgio no país Brasil. A lei também abrange quem deixou seu país de origem devido a graves violações de direitos humanos ou por não ter nacionalidade determinada, e estar fora do país onde vivia, não podendo ou não querendo retornar por receio de perseguição.
Bibliografia
CABRAL, Lucas, SAKAMOTO, Felipe. Transviados no cárcere: um retrato de LGBTs no sistema penitenciário. Disponível em: <https://www.abraji.org.br/publicacoes/transviados-no-carcere-um-retrato-de-lgbts-no-sistema-penitenciario>
ACNUR, 2017. Cartilha Informativa sobre a Proteção de Pessoas Refugiadas e Solicitantes de Refúgio LGBTI. Disponível em: <https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2017/Cartilha_Refugiados_LGBTI.pdf?file=fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2017/Cartilha_Refugiados_LGBTI>
BENEVIDES, Bruna. Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023. Disponível em: <https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2024/01/dossieantra2024-web.pdf>
The human rights situation of transgender people in the Philippines. Disponível em: <https://www.ohchr.org/sites/default/files/lib-docs/HRBodies/UPR/Documents/session13/PH/STRAP_UPR_PHL_S13_2012_SocietyofTranssexualWomenofthePhilippines_E.pdf>
Brasil tem um assassinato de pessoa trans a cada 3 dias, aponta relatório. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2024/01/29/brasil-tem-um-assassinato-de-pessoa-trans-a-cada-3-dias-aponta-relatorio
Why intersectionality can’t wait? Disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/in-theory/wp/2015/09/24/why-intersectionality-cant-wait/?postshare=5351443143466154
- Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm ↩︎
- De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), um grupo social seria um grupo de pessoas que compartilham uma característica comum, inata, imutável ou que é fundamental para sua identidade, consciência e exercício de direitos. Disponível em: <https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2014/9741.pdf?file=file-> ↩︎
- Disponível em: <https://antrabrasil.org/assassinatos/> ↩︎