por Heidi Cerneka, Sônia Drigo e Raquel da Cruz Lima
Artigo publicado no Boletim 261 – de Agosto de 2014 do IBCCrim
“Estou privada de minha liberdade há três anos.
O tempo que estou aqui é suficiente para poder expressar um pouco das inúmeras vezes que meus familiares foram humilhados ao serem revistados pelos agentes penitenciários. Chega a ser uma falta de respeito a maneira com que são tratados, não só os adultos como crianças. Digo isso, pois senti na pele o sofrimento, a vergonha e a indignação nos olhos cheios de lágrimas da minha filha de apenas 12 anos de idade ao me contar a forma com que ela foi tratada e revistada nesta unidade.
Minha mãe de 59 anos também já entrou chorando me ver, com a comida toda misturada dentro de um saco plástico simplesmente porque o tapuer não era transparente.
Eu não tenho muitas visitas desde que cheguei aqui.”– (Denúncia encaminhada à Pastoral Carcerária em 06.05.2012)
A violação aos direitos humanos é a regra que caracteriza a vida dos presos nos cárceres brasileiros. Contudo, dificilmente se enxerga que a violência e a arbitrariedade, que estruturam nosso sistema penitenciário, não estão contidas nos limites impostos pelos muros das prisões, mas alcançam todos aqueles que são vistos como “associados” ao crime.
No Brasil, fazer parte da família de uma pessoa presa significa sofrer com o estigma que advém do encarceramento e também ter seu próprio corpo transformado em um objeto passível de intervenção estatal. Ser visitante exige a adequação a uma série de regras determinadas pela administração penitenciária, que englobam desde o tipo de sacola permitida para a armazenagem do “jumbo”,(1) até as peças de roupa que podem ser usadas durante a visita. Mas, sem dúvida, a mais severa dessas regras é a revista íntima pessoal, vexatória, humilhante, realizada nos familiares, companheiros e cônjuges na entrada da maioria dos estabelecimentos penais do país, sob o pretexto de impedir a entrada de produtos ilícitos e armas.
Esse procedimento é feito, geralmente, de forma coletiva. Um grupo de pessoas desconhecidas, inclusive na presença de crianças, é obrigado a desnudar-se totalmente, a fazer uma série de agachamentos sobre um espelho, a abrir a genitália com as mãos, a soltar os esfíncteres, de modo a facilitar a visualização das cavidades corporais e a manipulação dos genitais por agentes penitenciários.
Nos últimos meses, ganharam destaque algumas iniciativas nos âmbitos estadual e federal que reconhecem o caráter degradante e inconstitucional(2) desse tipo de revista pessoal e proíbem a sua realização. Merece destaque a recente aprovação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, em caráter terminativo, do Projeto de Lei 480/2013, que proíbe a revista íntima vexatória em todo o Brasil, embora essa prática jamais tenha sido expressamente autorizada por lei.
Não se sabe ao certo quando, onde e como as primeiras revistas humilhantes foram praticadas. As organizações que trabalham diretamente com a assistência às pessoas privadas de liberdade recebem há muitos anos relatos de familiares sobre os constrangimentos sofridos, tanto físicos quanto verbais, para ingressarem nos presídios. Dar visibilidade a essas denúncias sempre foi um enorme desafio, pois não apenas existe uma profunda resistência das autoridades públicas e da sociedade para lidar com os temas ligados à garantia dos direitos das pessoas presas, como também há uma aceitação natural desses métodos truculentos de repressão à entrada de drogas, armas e aparelhos celulares nas unidades, inclusive pelos próprios agentes que os praticam.
Organizações como a Pastoral Carcerária e o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), que integram o Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas” (GET “Mulheres Encarceradas”), sempre apontaram a ilegalidade da revista vexatória e denunciaram o constrangimento imposto pelo Estado ao permitir que seus agentes inspecionassem os corpos nus dos visitantes da pessoa presa, inclusive dos bebês, crianças e adolescentes, pelo simples fato de serem parentes ou aparentados de pessoa custodiada.
Foi a partir da segunda metade da década de 1990 que essas e outras organizações que defendem os direitos e a dignidade humana das pessoas presas adotaram a estratégia de ocupar os mais diversos espaços para incluir na pauta dos congressos, seminários, encontros, audiências públicas municipais, estaduais e federais a prática da revista vexatória como uma violação de direitos humanos. Um dos primeiros resultados foi a instauração de um inquérito civil público pelo Ministério Público de São Paulo em 2004, a partir de representação oferecida pelo GET “Mulheres Encarceradas”, relativo aos constrangimentos enfrentados por crianças e adolescentes por ocasião da realização de visitas a ascendentes presos. Esse documento representa bem a violação de direitos por parte do Estado sob o manto da impunidade e em nome da garantia da segurança da unidade.(3)
Vários agentes públicos, tais como o Ministério Público de Goiás, o Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a sua Ouvidoria e a Magistratura de Santa Catarina, têm abraçado essa luta na certeza de que não podem ficar calados diante dessa situação de ilegalidade, injustiça e humilhação.
Apesar do esforço e da reiteração da prática e das denúncias, a marginalização dentro do Brasil das políticas públicas ligadas ao cárcere impulsionou o recurso à esfera internacional, como mecanismo de pressão pela proibição da revista vexatória. Parecia um caminho bastante propício para esse debate, especialmente, por haver previsão em tratados internacionais de regras incompatíveis com a prática da revista íntima, como a proteção à integridade pessoal, a pessoalidade na aplicação da pena e a proibição aos tratos desumanos e degradantes(4) e, também, por haver a proibição expressa desse tipo de revista em diversos países. Em relação a este segundo aspecto, ele emergiu de uma consulta realizada pela Pastoral Carcerária, a partir de 2003, junto a entidades da sociedade civil que militam em prol dos direitos dos presos e que constatou que países das mais diversas partes do globo, como Estados Unidos, Rússia, Quênia e Filipinas, não sujeitavam seus nacionais aos mesmos procedimentos rotineiros de revista que ainda hoje existem no Brasil.
Normas de soft law celebradas no âmbito das Nações Unidas em relação aos direitos das pessoas privadas de liberdade ofereceram o enquadramento ideal para demonstrar que o rechaço à revista vexatória não se refere meramente à forma de gerir o procedimento de visitação, mas à forma de conceber o sistema penitenciário e ao resguardo dos direitos dos próprios presos.
Nesse sentido, o ITTC e a Pastoral participaram em 2009 da elaboração das Regras da ONU para o tratamento da mulher presa (Regras de Bangkok), que também trata da revista íntima invasiva. Já em 2011, a revista vexatória apareceu como pauta em encontro do Subcomitê de Prevenção à Tortura das Nações Unidas (SPT), demonstrando as diversas facetas que a tortura e os tratamentos desumanos e degradantes assumem no sistema prisional brasileiro.
No âmbito latino-americano, um precedente de 1996 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos,(5) que concluiu que a revista íntima, na Argentina, da esposa e da filha de um preso violava a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, incentivou que denúncias sobre a revista vexatória fossem levadas à Organização dos Estados Americanos. Desse modo, uma denúncia sobre a revista vexatória como prática rotineira contra visitantes foi levada primeiro em 2007, pelo GET “Mulheres Encarceradas”, e depois em 2012, pela Pastoral Carcerária e pela Associação pela Prevenção da Tortura (APT).
A providência que alcançou maior impacto no plano interno foi a Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 22 de maio de 2014, nas medidas provisórias no assunto do Complexo Penitenciário de Curado. O pedido de medidas provisórias foi apresentado depois de uma série de denúncias encaminhadas à Comissão Interamericana pela Justiça Global, pelo Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões e pela Pastoral Carcerária sobre as violações de direitos humanos no centro penitenciário Aníbal Bruno, em Recife, desde 2008, primeiro contra as pessoas detidas e depois contra seus familiares e funcionários da instituição. Sobre os familiares, foi destacada a gravidade da revista vexatória, em relação à qual a Corte determinou que no curto prazo o Estado deverá eliminar a “prática de revistas humilhantes que afetem a intimidade e a dignidade dos visitantes”.(6)
Essa decisão da Corte foi recebida no Brasil em um contexto de crescente mobilização contra a revista vexatória. Ao longo de vários anos, algumas iniciativas locais vinham sendo adotadas no sentido de proibir ou de, no mínimo, limitar a revista vexatória, como ocorreu em Minas Gerais, por meio da Lei Estadual 12.492/1997; na Paraíba, nos termos da Lei Estadual 6.081/2010; no Rio Grande do Sul, pela Portaria 12/2008 da Superintendência dos Serviços Penitenciários; no Rio de Janeiro, pela Resolução 330/2009 da Secretaria de Estado de Administração; em Goiás,(7) pela Portaria 435/2012, da Agência Goiana do Sistema de Execução Penal; e, no Espírito Santo, pela Portaria 1.578-S/2012.(8) Na mesma linha, por meio da Portaria 3/2014 do Juiz da 1ª Vara de Execuções Penais, Pernambuco aderiu à proibição da revista vexatória.(9)
Essa mobilização em diversas instâncias repercutiu também no plano federal, no qual o histórico de mobilização da sociedade civil é extenso, como evidencia a sequência de Programas Nacionais de Direitos Humanos. No PNDH-1, de 1996, e no PNDH-2, de 2002, já se falava na normatização dos procedimentos de revista aos visitantes de estabelecimentos prisionais, com o objetivo de coibir quaisquer ações que atentassem contra a dignidade e os direitos humanos dessas pessoas. Já no PNDH-3, de 2009, essa previsão foi mantida, acrescentando-se a meta de elaborar projeto de reforma da Lei de Execução Penal, com o propósito de adotar mecanismos tecnológicos para coibir a entrada de substâncias e materiais proibidos, eliminando a prática de revista íntima nos familiares de presos.(10) Esses documentos são bastante representativos, pois foram construídos a partir de consultas à sociedade civil e identificam os principais obstáculos à promoção e proteção dos direitos humanos no Brasil, elegem prioridades e apresentam propostas concretas que buscam equacionar os mais graves problemas que impossibilitam ou dificultam a sua plena realização.
Em 2012, consonante com a meta do PNDH-3, foi instituída pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) uma Comissão Mista para analisar e apresentar proposta quanto à revista nos estabelecimentos penais no Brasil, da qual a Pastoral Carcerária fez parte. Desse trabalho resultou um anteprojeto de lei abolindo a revista vexatória, que serviu de base para o PLS 480/2013, recentemente aprovado no Senado.
Até a aprovação final e a sanção da lei, a revista vexatória fará parte do cotidiano semanal de, no mínimo, um milhão de pessoas. Contudo, sua efetiva eliminação depende mais da conscientização de toda a sociedade, do que da mera vigência de uma lei. É por esse motivo que em abril de 2014 a Rede Justiça Criminal lançou uma campanha pública, composta por vídeos e áudios, que busca sensibilizar a população para a violência que a revista vexatória representa.
Além disso, a Rede, juntamente com a Pastoral Carcerária e o Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, intensificou o diálogo público com os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo para demonstrar que, além de violar diversas garantias constitucionais, a revista vexatória é ineficaz na perspectiva dos objetivos que ela supostamente persegue. Dados levantados no Estado de São Paulo por meio da Lei de Acesso à Informação levaram tanto a Rede Justiça Criminal quanto a Defensoria Pública a concluir que em menos de 0,03% das revistas feitas no Estado são encontrados objetos ilícitos. Ou seja, menos de três em cada 10.000 pessoas humilhadas foram flagradas portando algum objeto ilícito, sendo esse número ainda menor se forem considerados os ilícitos que foram identificados dentro da genitália.(11)
Até que toda a sociedade perceba que as pessoas violadas por essa prática merecem respeito e são tão cidadãs quanto nós, nossos parentes, vizinhos, amigos e conhecidos, não teremos o fim da revista vexatória. Garantir a sanção da lei é o primeiro e mais urgente passo, mas consegui-la dependerá de toda sociedade.
Notas:
(1) Jumbo são os itens levados para o preso por suas famílias, que pode incluir produtos de higiene pessoal, limpeza, roupas, mantimentos e alimentos prontos.
(2) Em relação aos arts. 1.º, III, e 5.º, III e XLV.
(3) O Inquérito Civil 199/04 solicitou informações aos distritos policiais, cadeias públicas e penitenciárias sobre a realização de revista íntima nas visitantes dos presos e presas. Ao final, confirmada a prática, o Ministério Público Estadual recomendou às instituições penitenciárias não mais realizar, em crianças e adolescentes, qualquer tipo de conduta que enseje violação aos seus direitos.
(4) Previstos em documentos como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, e a Convenção dos Direitos da Criança, de 1982.
(5) CIDH, Relatório 38/96, Caso 10.506, Argentina, 15.10.1996. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/annualrep/96port/Caso11506.htm>. Acesso em: 15 jun. 2014.
(6) Corte IDH, Asunto del Complejo Penitenciario de Curado respecto de Brasil. Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos de 22 de mayo de 2014, par. 20.
(7) A revista humanizada hoje implementada em Goiânia tem sido divulgada pelo Promotor de Justiça Haroldo Caetano como um modelo a ser seguido em outros Estados.
(8) No Espírito Santo já havia uma lei estadual sobre a matéria, a Lei Estadual 6.611/2001, mas que até então não era implementada.
(9) Medida válida para o Complexo Prisional do Curado, o Centro de Triagem de Abreu e Lima (Cotel), Presídio de Igarassu, a Colônia Penal Feminina do Recife e de Abreu e Lima, o Centro de Reeducação da Polícia Militar e o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP).
(10) Semelhante ao que previra a Resolução 9, de 12.07.2006, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).
(11) Dados disponíveis em: <http://redejusticacriminal.files.wordpress.com/2013/07/rede-boletim-revista-vexatoria-marc3a7o-17-03-2014-web.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2014.