Nota ITTC: “Por que a Indonésia não executou a filipina acusada de tráfico de drogas”

A revista Época publicou uma matéria a respeito da filipina Mary Jane Veloso, condenada na Indonésia por tráfico de drogas, que seria executada no dia 28 de abril e teve a decisão adiada na última hora.  Sobre a questão das mulas, o Projeto Estrangeiras trabalha há quase 15 anos com as estrangeiras presas aqui no Brasil, das quais cerca de 90% são acusadas de tráfico de drogas. Confira o artigo escrito por Mariana Amaral, integrante da equipe do Projeto Estrangeiras, a respeito do assunto. 

A história de Mary Jane, apesar de se passar na Indonésia, é muito parecida com a história de diversas mulheres estrangeiras em conflito com a lei no Brasil pelo mesmo crime: o tráfico internacional de drogas.

O Projeto Estrangeiras trabalha há quase 15 anos acompanhando as histórias de muitas mulheres acusadas pelo crime de tráfico, as quais acabam ficando durante anos em cumprimento de pena, além de serem obrigadas a permanecer no Brasil, muitas vezes sem situação migratória regularizada. Assim como Mary Jane, grande parte delas viviam em situação de extrema vulnerabilidade em seu país de residência, além de serem normalmente as principais provedoras de suas famílias. Eram em sua maioria mães solteiras, mulheres responsáveis por seus filhos pequenos, por seus parentes idosos, por seus parentes com doenças graves que precisavam de tratamento.

Como descrito na matéria, essa situação de vulnerabilidade é explorada por uma pessoa “aliciadora”, que se aproveita dessa situação e oferece algum tipo de proposta, em geral de trabalho, em outro país, com passagem e estadia pagas. Sabendo ou não que estão realizando o transporte da droga, essas mulheres são presas, em geral, quando estão saindo do Brasil, e fica evidente que elas aceitam o trabalho por se verem em uma situação sem saída em que esta seria a melhor ou até a única maneira de continuar ajudando sua família e de prover seu sustento.

Dentro da cadeia do tráfico de drogas, as mulheres estrangeiras atuam no papel secundário de “mulas de drogas”. Elas costumam ser as responsáveis apenas pelo transporte da droga e não têm nenhuma ligação direta com as chamadas “organizações criminosas”. Suas vidas são frequentemente encaradas quase como descartáveis tanto por quem as aliciou, quanto pela polícia no momento da abordagem e pelo sistema de justiça criminal brasileiro como um todo – elas são extremamente invisibilizadas. Um dos exemplos é o que acontece com as chamadas “bois de piranha”, que já são aliciadas com o propósito de servirem de “iscas” para a polícia, são denunciadas pela própria organização e presas em flagrante enquanto outras pessoas passam pelo aparato de segurança e embarcam com uma quantidade maior de droga.

Atualmente, o entendimento do judiciário brasileiro é praticamente majoritário em encará-las como parte central das chamadas “organizações criminosas”, mesmo que elas demonstrem total desconhecimento acerca da verdadeira identidade da pessoa que as aliciou ou tenha qualquer outro contato com o crime organizado, o que resulta na cominação de penas severas dentro da legislação brasileira. Vale lembrar que o tráfico de drogas é tido como um crime hediondo no Brasil, mais um dos reflexos da política de “guerra às drogas”, o que dificulta a obtenção de benefícios e de progressões de pena, em especial quando se é uma mulher estrangeira no sistema de execução penal brasileiro.

Dentro e fora do sistema carcerário, essas mulheres enfrentam diversas opressões e adversidades por conta da lógica patriarcal do sistema de justiça, que as estigmatiza e não respeita suas necessidades específicas por serem mulheres e mães. Também estão submetidas a maiores dificuldades por serem estrangeiras, assim como Mary Jane e seu advogado tiveram de enfrentar uma barreira linguística durante seu processo, essa barreira também perdura no Brasil até mesmo nas próprias audiências criminais (o único momento que elas são ouvidas durante o processo). Dessa forma, acreditamos que seja necessário questionar a real função do tratamento dado a essas mulheres no Brasil, que, mesmo não sendo o da execução sumária, como ocorre na Indonésia, acaba sendo desumano, machista e racista.

Leia a matéria da revista Época:

Por que a Indonésia não executou a filipina acusada de tráfico de drogas

No último minuto, as autoridades indonésias decidiram poupar a vida de Mary Jane Veloso, de 30 anos, das Filipinas

REDAÇÃO ÉPOCA

A prisioneira filipina Mary Jane Veloso, condenada à morte na Indonésia. Na foto, ela participa de um desfile do Dia Da Mulher dentro da prisão Wirogunan, em Yogyakarta, Indonésia, em abril de 2015. (Foto: EFE/Bimo Satrio)

O governo da Indonésia executou, em pelotão de fuzilamentooito pessoas na tarde desta terça-feira (28), madrugada de quarta-feira no país. Entre os executados está o brasileiro Rodrigo Gularte. Mas o que chamou a atenção, no entanto, é que, no último minuto, as autoridades indonésias decidiram poupar a vida de Mary Jane Veloso, de 30 anos, das Filipinas. Quem é Mary Jane e o que levou um governo tão resoluto em executar traficantes a poupar um dos condenados?

Mary Jane não teve uma vida fácil. Ela deixou a escola quando ainda estava no ensino fundamental. Se casou aos 16 anos e, anos depois, foi abandonada pelo marido com dois filhos pequenos e nenhuma condição financeira para sustentar as crianças. “Nós vivíamos de recolher garrafas e latas na rua para vender para a reciclagem”, disse Marites Laurente, irmã de Mary Jane, ao jornal The New York Times. Eles viviam em uma casa de madeira, na estrada, em Cabanatuan, cidade próxima à capital Manila.

Segundo a família, em abril de 2010 ela recebeu uma oferta de emprego para trabalhar como empregada doméstica na Malásia. O trabalho não exigia qualificação e o salário era bom. Ela colocou todos seus pertences em uma mochila infantil e viajou com a recrutadora para Kuala Lumpur. Ao chegar lá, no entanto, lhe disseram que o emprego fora cancelado – mas que tinha outro, similar, na Indonésia. Ainda segundo o relato dos familiares, a recrutadora comprou novas roupas, uma nova mala, e ela embarcou, dessa vez sozinha, para a Indonésia. Quando chegou ao aeroporto de Yogyakarta, foi barrada pelas autoridades, que encontraram 2,6 quilos de heroína na mala.

A promotoria disse que Mary Jane sabia que estava transportando droga e, por isso, pediu a pena de morte. O julgamento, ao menos para a filipina, foi confuso. Seu advogado tinha um inglês muito limitado, e ela mesma não entende bem o inglês, que, apesar de ser reconhecido como língua oficial nas Filipinas, não é tão falado quanto as línguas regionais. Ela também não teve tradutor disponível na hora de prestar depoimento às autoridades, o que claramente compromete o direito à defesa. Ainda assim, em outubro de 2010, foi condenada à morte.

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Imigrantes que trabalham na Indonésia acendem velas em homenagem a Mary Jane Veloso, das Filipinas. Ela foi condenada à morte por tráfico de drogas. (Foto: EFE)

O caso provocou indignação nas Filipinas. O presidente das Filipinas, Benigno Aquino, fez três apelos para que a Indonésia adiasse a execução. O governo do presidente Joko Widodo, que foi eleito com uma plataforma de guerra às drogas, recusou todos. Familiares fizeram manifestações em Manila e trabalhadores imigrantes na Indonésia também se manifestaram. Nada parecia comover as autoridades do país.

A sorte de Mary Jane só mudou na última hora. Sua família já tinha sido avisada da execução quando, nas Filipinas, uma mulher alegando ser a aliciadora de Mary Jane se entregou à polícia, nesta terça-feira. “A execução foi adiada por um pedido do presidente das Filipinas, que disse que uma traficante de pessoas se entregou com relação ao caso”, disse Tony Spontana, porta-voz da Procuradoria da Indonésia, segundo o Jakarta Post. Segundo ele, a traficante, identificada como Maria Kristina Sergio, alega ser a pessoa que aliciou Mary Jane.

Antes de saber da notícia, Mary Jane escreveu uma carta endereçada ao presidente indonésio, em que pedia para preservar sua vida e assim poder criar os dois filhos. “Como mãe, tenho duas crianças que ainda são pequenas e precisam do amor de uma mãe.” Os meninos têm doze e seis anos de idade e, atualmente, vivem com a avó.

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Imagem: Revista Época

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maio 18, 2015 | Sem categoria | 0 Comentários

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