A maternidade atrás das grades: narrativas processuais

Por Mariana Lins de Carli Silva

A forma como a realidade concreta é constituída nas narrativas processuais tem um papel determinante nas decisões judiciais. Para mulheres privadas de liberdade, o olhar atento às condições do exercício da maternidade se revela de extrema importância dada a latente sobrevalorização da maternidade em relação à paternidade construída socialmente, fruto de um longo histórico.

Recentemente, duas pesquisas com enfoque nas narrativas jurisprudenciais, divulgadas pelo ITTC, revelam a escassez com que processos criminais consideram o impacto da prisão de mulheres para familiares, especialmente os filhos e dependentes. Não suficiente, nos poucos casos em que há essa informação no processo, percebe-se um aprofundamento moral da força do poder punitivo por meio da forma como é mobilizada a maternidade de mulheres aprisionadas.

A pesquisa “A jurisprudência brasileira sobre maternidade na prisão” realizou uma coleta de acórdãos proferidos no STF, STJ e em 4 Tribunais Estaduais. Uma de suas principais conclusões é a invisibilidade do tema da maternidade nas narrativas construídas nos processos judiciais, principalmente nos criminais. A análise fez um recorte temporal de 10 anos (2002 a 2012) para coletar jurisprudência e o total de casos pertinentes ao estudo foi de 122. Se os dados do INFOPEN 2014 nos dizem que 80% das mulheres presas são mães, podemos perceber que essa assimetria entre realidade e processo demonstra que essa informação não tem sido abordada pelos atores do sistema de justiça (inclusive Defensorias) como um aspecto central para a busca do desencarceramento feminino.

A construção de trajetórias dessas mulheres por meio dos atores e atrizes do Sistema de Justiça Criminal muitas vezes se vale de visões moralistas sobre o exercício da maternidade. O artigo “Quando a casa é a prisão: uma análise de decisões de prisão albergue domiciliar de grávidas e mães após a Lei n°. 12.403/2011”, que analisou acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, notou uma interessante dicotomia na abordagem da maternidade por magistrados e magistradas. O “vir a ser mãe”, vivenciado principalmente por gestantes e lactantes, é muitas vezes tratado como possibilidade de salvação moral das mulheres. A maternidade é apresentada como promotora de adequação social da conduta da mulher e redenção do desvio selecionado. Por outro lado, mulheres com filhos pequenos, portanto maternidades que já estavam em exercício quando tiveram suas condutas selecionadas, diversas vezes são deslegitimadas a partir do rompimento da expectativa social do parâmetro (elitista e branco) da “boa mãe”, já que “ser mãe não a impediu de cometer o crime”. Em síntese, magistrados e promotores de Justiça por diversas vezes apontam que uma mulher que é mãe e é capturada pelo sistema não é uma boa mãe.

Não há como perder de vista que o controle das maternidades legítimas também se baseia em fatores de raça e classe. Nesse sentido, o papel que muitas mulheres desempenham no tráfico de entorpecentes – principal crime que gera o encarceramento de mulheres no Brasil – via de regra permite um “melhor” desempenho da maternidade. Abandonadas por seus companheiros, a prática criminalizada muitas vezes complementa a renda para sustento dos filhos e ao mesmo tempo facilita o cuidado com os filhos e com a casa. Mas, como demonstra a pesquisa mencionada, o Judiciário por vezes configura o comércio de drogas como um atestado de uma maternidade irresponsável.

A conclusão da pesquisa de que toda gestação no sistema prisional é uma gestação de risco por conta das inúmeras condições precárias e insalubres de atendimento médico nos revela mais uma faceta perversa do controle das mulheres. O pré-natal – assim como a maioria das emergências de saúde -, quando realizado, é feito fora da unidade prisional, o que depende da disponibilidade de escolta para transporte da mulher. Apesar disso, de forma geral os magistrados e as magistradas optam por ignorar as condições materiais e exigem atestados médicos para concessão de prisão albergue domiciliar por conta de gravidez de risco.

O Poder Judiciário frequentemente negligencia o peso que a maternidade tem para as mulheres. Além disso, quando mobiliza a maternidade de mulheres presas se vale da condição como mais uma forma de puni-las. Sem qualquer autonomia para decidir como querem criar seus filhos, as mães atrás das grades questionam se seus filhos lhe pertencem ou se são mais um instrumento do poder público para castigá-las.

Diante das constatações, a tônica da política para garantia dos direitos reprodutivos das mulheres presas e de seus filhos deve ser o desencarceramento e o amplo acesso à assistência médica e pessoal.

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jul 5, 2016 | Artigos | 0 Comentários

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