Sobre a PEC 241, privatizações e os povos tradicionais

Por Caroline Hilgert**

Sobre a PEC 241, privatizações e os povos tradicionais

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, justificada no apelo do endividamento público, impõe como cláusula constitucional o congelamento dos investimentos sociais pelos próximos 20 anos: um governo ilegítimo quer determinar os próximos quatro governos que serão eleitos pelo povo. Nos termos da proposta, ainda que haja o aumento da arrecadação no país, estará vetado pela Constituição que se invista mais em setores como Saúde e Educação, pois tal montante deverá ser destinado ao pagamento dos juros da dívida, remunerando assim os bancos e portadores de títulos públicos.

Como bem disse Mauro Luiz Iasi[1], “equilíbrio, neste sentido, significa ‘gastar menos’ para que não se comprometa a capacidade do Estado pagar e continuar pagando os juros da dívida interna e externa”, e, ainda, que “a maioria da sociedade tem que se sacrificar e abrir mão de seu futuro para salvar uma insignificante minoria de super ricos e seu modo de produção parasitário”.

Segundo a Auditoria Cidadã, no ano de 2015, até 31 de dezembro a dívida consumiu R$ 962 bilhões, o que é igual a 42% do gasto federal. Na PEC 241, conhecida como a PEC da Morte ou PEC do Fim do Mundo, as políticas sociais sofrerão o maior desfalque de recursos. De acordo com Guilherme Boulos, se tal lei estivesse valendo desde 2006, hoje os gastos com educação estariam reduzidos para 1/3 do atual, e na saúde, em mais da metade. Sem falar o que o corte representaria no salário mínimo, que achata o poder de compra, e faz lembrar a frase do então deputado Nelson Marquezelli (PTB), “quem não tem dinheiro, não faz universidade”[2], que remonta a ideia de Estado mínimo exaltada pela direita, que apoia este Governo que não foi eleito pelo povo.

Temer anunciou um pacote de privatização de setores como de energia e saneamento, aeroportos, portos, rodovias, ferrovias e mineração, tudo para tentar “aquecer” a economia. Aprovou a Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, que cria o Programa de Parcerias de Investimentos – PPI e acelera as concessões para a iniciativa privada. Inclusive estabelece que, para viabilização rápida das parcerias, devem ser descartadas quaisquer burocracias necessárias a sua liberação. Segundo o artigo 17, parágrafo 1º: Entende-se por liberação a obtenção de quaisquer licenças, autorizações, registros, permissões, direitos de uso ou exploração, regimes especiais, e títulos equivalentes, de natureza regulatória, ambiental, indígena, urbanística, de trânsito, patrimonial pública, hídrica, de proteção do patrimônio cultural, aduaneira, minerária, tributária, e quaisquer outras, necessárias à implantação e à operação do empreendimento. Flagrantemente inconstitucional.

Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, por sua vez, sorrateiramente pediu para incorporar no projeto de Lei da Migração a facilitação de entrada de estrangeiros que venham fazer investimentos no país e de contratação de estrangeiros especialistas.

O corte de investimentos sociais necessariamente combinado à onda de privatizações afeta de forma especial os povos indígenas e tradicionais.

Para os povos indígenas, quilombolas e tradicionais, o corte de recursos do orçamento já é realidade. O orçamento da Funai, por exemplo, para o exercício 2016 foi o menor dos últimos 4 anos, R$ 502 milhões. Para se ter uma ideia, em 2012 a Funai recebeu R$ 519 milhões e em 2015 o orçamento da Funai foi de R$ 639 milhões[3]. Não por acaso, o item que sofreu maior impacto no planejamento foram as ações de demarcação de terras indígenas, o que garantiu e garante a morosidade desses processos e a aceleração do genocídio indígena no país.

Já na Secretaria de Saúde Indígena – SESAI, que é fruto de muita mobilização indígena, os cortes orçamentários ocorrem no dia-dia das comunidades, havendo uma enorme precarização do serviço prestado. Em termos de orçamento, “entre 2011 e 2014, o orçamento da Sesai triplicou. Em números absolutos, a verba destinada ao órgão saltou de 326 milhões de reais para 1,045 bilhão de reais. Contudo, segundo levantamentos do CIMI, apenas 7,5% do orçamento de 2014 para a estruturação da saúde indígena foram executados pela Sesai.”[4].

Foi publicada Portaria 1.907 de 17/10/2016, do Ministro da Saúde Ricardo Barros, que revogou o Decreto 475 de 2011, retirando portanto a autonomia e independência no ordenamento de despesas do Secretário da SESAI, sendo agora de sua própria competência. Vale dizer que o movimento indígena dos estados de SP e PR estava há semanas em reuniões no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) em Curitiba, reivindicando direitos e a aplicação e não redução dos recursos para a saúde, quando foi realizada uma reunião secreta em Brasília, que resultou na publicação da Portaria 1.907, que teve como resultado centralização em Brasília das decisões sobre demandas específicas dos povos indígenas do Brasil inteiro. Vários DSEIs foram ocupados pelos povos indígenas contra a portaria do Ministro. A Portaria 1.907 foi totalmente revogada pelas portarias 2206 e 2207 no dia 26 de outubro, restabelecendo as portarias 475/11 e 33/13 e, por consequência, a autonomia da Sesai e a descentralização do Subsistema de Saúde Indígena.

Além disso, as insistentes propostas do Ministério da Saúde de criação do Instituto de Saúde Indígena – INSI[5], que privatiza e terceiriza a saúde indígena, já assombram os povos há alguns anos, juntamente com propostas de municipalização. Se os indígenas possuem uma Secretaria própria de saúde, outros povos tradicionais não, o que faz com que sejam afetados diretamente e de forma específica pela precarização da saúde pública, mas principalmente pela falta de acesso a esta.

Por outro lado, o corte de orçamento do INCRA para titulação de territórios quilombolas foi cortado do ano passado pra cá em 80%, De 25 milhões passou para 5 milhões. Este é ainda menor do que o orçamento de 2009, que era de 5,470 milhões. O auge de tal orçamento se deu em 2012, com 51 milhões. Da mesma forma, o ITESP do ano passado para cá sofreu redução de 30% de seu orçamento. Isso quer dizer que, com a PEC 241, os gastos serão congelados em seus níveis mais baixos. O Ministério da Cultura, que inclui a Fundação Palmares, por exemplo, em 4 anos perderia 90% de seu orçamento.

Para reforçar, privatizações de Parques Estaduais passam a ser recorrentes e parecem caminhar junto com o pacotão do Temer. Em SP, Geraldo Alckmin aprovou a Lei nº 16.260/2016, que em seu Artigo 1º autoriza a concessão da exploração do ecoturismo e a exploração comercial madeireira ou de subprodutos florestais, pelo prazo de até 30 (trinta) anos, dos Parques Estaduais listados no respectivo anexo da lei.

Vinte e cinco parques serão privatizados. Dentre eles o do Jaraguá, da Serra do Mar, do Alto Ribeira e da Caverna do Diabo. A Lei, por seus requisitos, facilita a concessão para empresas principalmente estrangeiras, para o fim de exploração comercial de madeira e ecoturismo. Enquanto isso, os quilombolas não podem tirar uma árvore para construir suas casas sem serem multados na associação, ou mesmo abrir seus roçados sem autorização. Desconsidera, portanto, que as áreas são sobrepostas a territórios de reivindicação indígena, quilombola, cabocla e caiçara e nega a autodeterminação dos povos tradicionais. Sem consultá-los, como determina a Convenção 169 da OIT e a Constituição Federal, a lei aponta como objetivo a proteção das comunidades tradicionais, como se fosse possível dessa forma conciliar os interesses econômicos da privatização[6] com os interesse coletivos das comunidades tradicionais resistentes.

As privatizações e os cortes de recursos destinados a investimentos sociais ficam claros quando combinamos a PEC 241, o pacotão do Temer e a Lei da Privatização dos Parques e Cavernas do Governador Geraldo Alckmin. Conjugadas representam a erradicação das propriedades comuns e coletivas em favor da apropriação privada de todos nossos recursos e conhecimentos. A desculpa da suposta crise e necessidade de crescimento e desenvolvimento econômico compreende um modelo de sacrifício e morte das populações tradicionais e minorias, que passa pela venda do território brasileiro para a exploração de empresas multinacionais. É a perpetuação do genocídio dos povos tradicionais no país.

A PEC 241 foi aprovada na Câmara dos Deputados no dia 26 de outubro e agora tramita no Senado como PEC 55.

Assista à entrevista de Caroline Hilgert para a TVT sobre a PEC 241.


* Texto preparado para apresentação, em 22/10/2016, na mesa da Audiência Pública sobre a Lei 16.260/2016 que permite a concessão de serviços, por 30 anos, em Parques Estaduais para exploração comercial de madeira e ecoturismo. Publicado pela Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira – EAACONE, 24/10/2016, disponível em: https://www.facebook.com/eaacone.valedoribeira/posts/630783603750279.

** Caroline Hilgert é advogada, assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, apoiadora da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira – EAACONE e do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC.

[1] Ainda, segundo o mesmo autor Mauro Luiz Iasi, em seu artigo A PEC 241 e o Estado, “A PEC 241 é um instrumento fundamental para manter o mesmo mecanismo que gerou a crise que ela agora diz querer enfrentar, para gerar um novo ciclo de ‘crescimento’ cada vez mais limitado e cada vez mais destrutivo que irá gerar uma crise ainda maior no médio ou curto prazo, como ficou comprovado em todos os países da Europa que seguiram este caminho e na Grécia onde tal alternativa gerou a catástrofe que agora se presencia. Temos que reagir e nos levantar agora, enfrentando decididamente estas medidas, ou pagaremos, nós e a próxima geração, um alto preço por nossa omissão”. Publicado em https://blogdaboitempo.com.br/2016/10/17/a-pec-241-e-o-estado/.

[2] Disponível também em http://www.revistaforum.com.br/2016/10/12/quem-nao-tem-dinheiro-nao-faz-universidade-diz-deputado-do-ptb/

[3] Disponível em http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-funai-pede-socorro. Para ver o orçamento da Funai 2016: http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/despesa/loa2016.pdf.

[4] Disponível em: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=7706&action=read.

[5] Ver também: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/mpf-se-manifesta-contra-criacao-de-instituto-que-terceiriza-a-saude-indigena-2080.html

[6] Apesar da diferença técnica jurídica entre concessão de serviço e privatização da área, na prática, uma concessão, nos moldes apresentados pela Lei 16.260/2016, pelo período de 30 anos, significam a mesma coisa. Assim, ficou conhecida como Lei da Privatização dos Parques e Cavernas do Estado de São Paulo.

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nov 9, 2016 | Artigos | 0 Comentários

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