Informe 2015 da Anistia Internacional denuncia violações aos direitos humanos

Por Mariana Camara do Programa Justiça Sem Muros – ITTC

Foi publicado recentemente o Informe da Anistia Internacional acerca do estado de direitos humanos no mundo – revelando dados interessantes dos panoramas regionais e dos 52 países acompanhados pela organização no que diz respeito aos avanços e retrocessos na política de direitos humanos. Ainda que os tópicos mudem um pouco de país para país, de forma geral o texto enfatiza as violações aos direitos humanos em situações de protesto (processo marcante nos anos de 2013 e 2014), os temas da segurança pública, da liberdade de expressão, da tortura, do sistema carcerário, do tráfico de armas, do gênero e do uso abusivo da força, entre outros.

De um ponto de vista mais geral, os países do continente americano apresentaram semelhanças nas dificuldades de implementação da política de direitos humanos, especialmente em razão da desigualdade cada vez mais profunda dos países, somada a discriminação, degradação ambiental e impunidade histórica. O grau crescente dos conflitos tem produzido reações cada vez mais militarizadas das instituições aos desafios sociais e políticos. O acesso à justiça também permanece dificultado – sobretudo nas comunidades mais desfavorecidas.

O descumprimento das normas internacionais sobre o uso da força policial teve especial atenção por causa da intensa repressão policial que incidiu sobre os protestos de 2013 e 2014 ocorridos em diferentes países do continente. A abordagem relata desde prisões infundadas até excessivo uso da força policial em nome da segurança pública – pontuando ainda a quantidade considerável de jornalistas e outros defensores dos direitos humanos agredidos e atacados pela polícia, na tentativa de denunciar abusos de poder.

As UPPs no Rio de Janeiro foram objeto de atenção no relatório, em razão da ampliação de seu tempo de instalação nas comunidades cariocas por um período indefinido. A insegurança em relação à sua permanência é atribuída, entre outros fatores, à debilidade dos mecanismos de prestação de contas desde a ditadura militar, que contou com crimes cometidos contra os direitos humanos que seguem sem condenação.

A impunidade dos crimes de abuso de poder aparece no texto com bastante importância: são relatados inúmeros abusos policiais atuais – desde o caso de Amarildo até o da prostituta Isabel, passando pelo caso de Cláudia, arrastada por viatura policial – que chocaram a opinião pública e seguem sem condenação ou resposta. As acusações e condenações de crimes de abuso de poder parecem depender de gestões cuidadosas. É emblemático o caso da juíza Patrícia Acioli que foi morta depois de sentenciar 60 policiais condenados por participação no crime organizado em agosto de 2011, também lembrado pelo relatório.

De abril de 2013 a abril de 2014, os tribunais sentenciaram 75 policiais pelas mortes de 111 presos durante a rebelião na penitenciária do Carandiru em 1992. No entanto, os policiais interpuseram recursos e seguiam ativos em suas funções até o fim do ano. Apesar de o comandante da operação policial ter sido condenado em 2001, a condenação foi posteriormente anulada.

Esse caso é emblemático por ter sido responsável pela mudança legislativa no país que permitiu que o julgamento de crimes de militares contra a vida de civis passasse de tribunais militares à competência da justiça comum. Isso acontece ainda em outros países do continente americano. Essa mudança, entretanto, não garantiu a imparcialidade esperada no julgamento desse tipo de crime. E a impunidade a que os crimes militares contra a vida de civis estão sujeitos parece contribuir para a aceitação da violência por eles praticada.

O pacto silencioso feito entre a força repressiva do Estado e a impunidade a eles garantida é tão atual quanto histórica: a Lei da Anistia continua protegendo indivíduos que praticaram crimes contra a humanidade no período da ditadura militar – de 1961 a 1979 –, favorecendo uma cultura política que não dá respostas a esse tipo de crime. A Comissão da Verdade, responsável pela averiguação dos crimes cometidos durante o período, tem na sua agenda a recomendação de desmilitarização da polícia, considerando o nível de violência utilizada pela instituição na resolução de conflitos.

As condições prisionais continuam sendo um problema endêmico na sociedade brasileira. Esse tópico aparece no relatório como extremamente problemático. A superlotação extrema, as condições degradantes, a tortura e a violência a que os presos são submetidos são marcas diárias da instituição que se propõe punir indivíduos por crimes que, muitas vezes, estão infundados ou ainda aguardando julgamento.

É perceptível, no que diz respeito a esse ponto, que nos processos judiciais brasileiros as políticas criminais têm assumido maior severidade, dotadas de forte caráter de controle social. Os indivíduos são vistos em suas condutas antissociais não como sujeitos que merecem algum tipo de solidariedade e direitos, mas como responsáveis pela quebra da ordem¹ – o tratamento a eles relegado, portanto, é consequência dessa interpretação.

O relatório lembra ainda o episódio trágico da penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, em que os presos foram decapitados após uma tentativa de rebelião e o evento foi filmado e exibido nos meios de comunicação.

Com o tema da impunidade, o relatório abordou também os obstáculos no acesso à justiça. As principais barreiras apontadas são a ineficiência dos sistemas judiciais, em conjunto com a falta de independência do Poder Judiciário. As dificuldades são ainda mais graves para as comunidades desfavorecidas economicamente e para os defensores dos direitos humanos. O Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH) segue com dificuldades na sua implementação por falta de recursos, falta de coordenação entre autoridades estaduais e disputas sobre o escopo do programa e sobre quem deveria se beneficiar dele.

Conflitos envolvendo indígenas e comunidades quilombolas também aparecem no relatório, que relata mortes, crimes, fugas e exploração ilegal de madeira. A tentativa das comunidades e populações indígenas de se apropriarem de suas terras e direitos encontra barreiras em fazendeiros e empresários, problema que parece não ser alcançado ou resolvido pelo Estado, que deixa que esses conflitos ocorram e se resolvam sem qualquer condenação, problematização política ou julgamento.

O país aparece, contudo, como referência no que diz respeito às questões legais envolvendo privacidade na internet e direitos de lésbicas, gays, bi, trans e intersexuais. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução autorizando o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

No entanto, lideranças conservadoras colaboram para a manutenção de uma moral oposta a essas conquistas. Foi vetada a distribuição de materiais explicativos com o fim de conter a discriminação nas escolas e muitas declarações intolerantes são feitas, ainda, por lideranças políticas e religiosas. Trezentas e doze pessoas foram mortas em crimes de ódio homofóbicos ou transfóbicos – e a diferença de classe aparece como marcador importante no que diz respeito à taxa de homicídios. Além do dado de que 60 mil pessoas, em média, morrem no Brasil por ano, a taxa de homicídios de negros é de 36,5 por 100 mil habitantes. No caso de brancos, a relação é de 15,5 por 100 mil habitantes.

O tema do aborto segue a mesma lógica: o relatório mostra que o assunto tem sido alvo de pressão de lideranças políticas conservadoras para ser criminalizado, mas o aborto clandestino, realizado por mulheres das camadas mais pobres, tem causado mortes, como o caso de Elisângela, no Rio de Janeiro, que morreu enquanto fazia aborto clandestino e teve seu corpo incinerado pelo pessoal da clínica. A faceta cotidiana e violenta desses temas mostra as incongruências desse discurso político com a vida diária.

Os fatores elencados pelo relatório circulam com naturalidade no cotidiano violento da realidade brasileira, assistidos pela mídia na banalização e ausência de devida problematização. Aos abusos policiais, péssimas condições prisionais, torturas e maus-tratos soma-se a falta de responsabilização desses crimes cometidos pelo Estado. O pacto entre as instituições repressoras, o sistema judiciário e o abuso de poder dos seus agentes revela que uma sociedade caracterizada por uma lógica extremamente punitiva tem optado por esse tipo de tática para tentar resolver ou conter os conflitos sociais, impedindo que a política de direitos humanos seja plenamente instalada no Estado.

_______
¹ Essa interpretação é do ensaio “A contribuição de David Garland sobre a sociologia da punição”, de Fernando Salla, Maitê Gauto e Marcos César Alvarez.

Clique aqui para acessar o Informe completo.

Imagem: Divulgação Anistia Internacional

Compartilhe

mar 25, 2015 | Noticias | 0 Comentários

Posts relacionados