ITTC Entrevista: Beatriz Besen e Laila Sala

Conversamos com Beatriz Besen e Laila Sala sobre a experiência e a busca de alternativas para resolução de conflitos fora da esfera penal

Desde o início de 2017, o ITTC articula, com o apoio da Rede Justiça Criminal, a campanha pela Agenda Municipal para Justiça Criminal. Voltando o olhar para a atuação do município no combate ao encarceramento em massa, o documento traz, em quatro etapas, diretrizes de como inserir boas práticas na justiça criminal, enquanto município.

A série de vídeos “O que o município tem a ver com isso?” traz diferentes narrativas e experiências com justiça criminal dando enfoque às propostas da Agenda. A parte 2 do vídeo “Punição e resolução de conflitos” traz a experiência do CEU Heliópolis.

+ Assista “Punição e resolução de conflitos: o que o município tem a ver com isso? Pt. 1”

Beatriz Besen, psicóloga e mestranda em Psicologia Social pela USP e em Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSO, e Laila Sala, educadora e gestora na área de educação do CEU Heliópolis, conversaram com a equipe do ITTC sobre a importância da implementação de práticas alternativas de resolução de conflitos, e a inserção delas nas redes de serviços municipais.

Conheça as propostas para atuação do município na justiça criminal

Confira abaixo:

ITTC: A resolução de conflitos fora da esfera penal é uma das recomendações que compõem a Agenda Municipal para Justiça Criminal, realizada pelo ITTC com apoio da Rede Justiça Criminal. Qual a importância de se adotar práticas alternativas de resolução de conflitos?

Beatriz: Se lutamos de fato pela efetivação dos direitos e pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária, precisamos urgentemente refletir sobre como conduzimos a resolução de conflitos. O conflito pode surgir de questões individuais ou coletivas, mas como definimos o melhor caminho para resolvê-los sempre se conecta com questões e imposições sociais e culturais. Se pensamos que infligir dor, expulsar, excluir ou punir são os melhores caminhos, necessariamente construiremos uma sociedade cindida e desigual. Se propomos o diálogo, o encontro, a escuta; com responsabilização que é completamente diferente de culpabilização; construiremos espaços democráticos. O conflito em si não é o nosso problema, o problema real é como vemos e lidamos com ele.

Laila: Segundo algumas interpretações, um dos maiores desafios da educação atualmente diz respeito à questão da “disciplina” (ou da falta dela) por parte dos estudantes. Para alguns, esse problema é resultado do fato de que as escolas têm cada vez menos formas de punir os alunos. Isto é, segunda essa visão, os estudantes se “comportam mal” porque têm menos medo e, portanto, menos “respeito”, pela instituição escolar. No CEU Heliópolis Profª Arlete Persoli nos contrapomos a essas interpretações Entendemos que há sempre uma história e, portanto, uma longa construção individual e social daqueles comportamentos considerados “anormais”, “violentos”, “indisciplinados”, “infratores” etc.

O fundamento da educação que tentamos realizar aqui é a democracia, pautada por cinco princípios: “tudo passa pela educação”; “a escola como um centro de liderança onde está inserida”; “autonomia, responsabilidade e solidariedade”. Princípios esses que foram construídos ao longo de 40 anos de história de organização comunitária e luta por direitos

Muito mais importante é o estabelecimento de espaços democráticos de diálogo e, principalmente, de escuta, para que todos possam chegar a uma compreensão mais profunda e mais consciente daqueles fatores que fizeram emergir o conflito, de modo que possam chegar a uma resolução mais contundente, na qual não há mais “culpados” e sim sujeitos capazes de inventar soluções coletivas para suas próprias mazelas e que sejam capazes, e responsáveis, por colocar essas soluções em prática. Dessa forma “o outro” deixa de ser a fonte dos problemas e passa a ser parte de sua solução.

“O conflito em si não é o nosso problema, o problema real é como vemos e lidamos com ele.” Beatriz Besen

ITTC: Quais são os maiores desafios de se implementar esse tipo de práticas em um serviço municipal?

B: Considero que um dos desafios é justamente desconstruir essa ideia de que o conflito se resolve encontrando um culpado e estabelecendo uma punição. As pessoas nos trazem essa expectativa. Propor o diálogo pode ser muito mais demorado e exige que as pessoas do serviço disponham tempo e atenção. Daí vem o segundo desafio, estabelecer e garantir tempo para lidar com conflitos e transformar isso em currículo e projetos. Abordar diretamente o conflito significa também se aprofundar e se interessar pela realidade e pela experiência dos envolvidos, construindo as soluções em parceria. Eu sempre vi isso como parte essencial do trabalho de todo equipamento público, e consequentemente de seus servidores. E o que pode surpreender é que essa prática de fato transforma o espaço e as relações dentro dele, com o tempo há uma redução dos conflitos, e as pessoas também passam a ser mais autônomas para encontrar soluções. .

L: Penso que são muitos os desafios e que eles também diferem bastante conforme o tipo de equipamento municipal a que nos referimos. No entanto, talvez, um desafio que pode ser comum às mais variadas instituições estatais seja justamente as concepções e práticas que formam os espaços públicos. Pensar sobre eles é um desafio, considerando a história do Brasil, um país que se constituiu de forma autoritária e patrimonialista, no qual os domínios privados, os grandes proprietários, se constituíram, e ainda hoje o são, como núcleos da ação política e que, por isso, as esferas públicas e privadas se confundem intencionalmente.

E se apenas pensar já é difícil, constituir um espaço público que seja de fato democrático, no qual a população se aproprie e crie pertencimento e se enxergue como sujeito de direito dentro dele é um desafio quase intransponível. Mas também, aqui no CEU Heliópolis, é nosso principal objetivo.

A EMEF Pres. Campos Salles – escola que tem e teve papel fundamental no projeto que busca transformar Heliópolis em um Bairro Educador é também conhecida como a escola sem paredes, por conta de seu projeto político pedagógico transformador e democrático. O que se buscava com a derrubada dos muros (físicos e simbólicos) era tornar a escola de fato um equipamento que pertence à comunidade, diminuindo as distâncias entre as pessoas, muitas vezes provocadas pelo medo. E com essa escola, aprendemos que muros, ao contrário do que possa parecer, não nos protegem, apenas nos separam. Estamos protegidos somente quando estamos juntos, nos educando coletivamente.

“Com essa escola, aprendemos que muros, ao contrário do que possa parecer, não nos protegem, apenas nos separam. Estamos protegidos somente quando estamos juntos, nos educando coletivamente.” Laila Sala

ITTC: Com a experiência de vocês nesse sentido, qual a importância das pessoas que trabalham na rede de serviços municipais serem orientadas a buscar novas formas de solucionar conflitos?

B: Considero que a importância está justamente na construção de espaços mais democráticos e menos violentos. A abertura para a comunidade, a responsabilização de todos na gestão e na construção de regras para uso do espaço, a busca de diálogo e de alternativas compartilhadas para solucionar os conflitos acabam por conduzir a uma maior autonomia, responsabilidade e solidariedade das pessoas

L: Acho que essa orientação é fundamental, no sentido de trabalhar novas concepções e principalmente práticas de resolução de conflitos que possam ser úteis ao trabalho de cada um dos equipamentos.

De certa forma, nós, os servidores públicos, temos também dificuldade de entender e vivenciar o espaço público como tal, porque assim como os “atendidos”, também fazemos parte de um contexto patrimonialista e autoritário. E isso pode se manifestar tanto em um enorme cadeado no portão, quanto em um detalhe mais “escondido” como um banheiro quebrado e nunca consertado. Penso que a constituição de um equipamento municipal como espaço de fato público e democrático é uma das condições sine qua non para se buscar novas formas de resolução de conflitos.

Por isso, no que tange à orientação aos servidores, é necessário considerar que a construção democrática e coletiva de regras de convivência, manejar e acolher diferentes histórias e interesses, entender e considerar o contexto mais específico do bairro onde o equipamento está inserido, conhecer e se relacionar com a rede de proteção social. Do mesmo modo seria muito incoerente buscarmos realizar uma orientação que não esteja aberta para uma escuta dos servidores municipais – parte fundamental dessa transformação profunda nas formas como lidamos com os conflitos – pedindo que eles reinventem suas práticas sem oferecer condições materiais adequadas para tal. Há também muito sofrimento entre os servidores públicos.

 

ITTC: A integração dos serviços municipais é uma das propostas presente na Agenda Municipal para Justiça Criminal. Como esse diálogo entre os serviços pode contribuir na resolução de conflitos fora da esfera penal?

B: Quando falo da necessidade de tempo para lidar com conflitos, isso também tem relação com ampliar a rede de atores envolvidos nessa mediação. A criança/jovem/adulto que está ali no equipamento tem uma família, frequenta diversos outros serviços e deve ser pensada em sua integralidade, não de forma fragmentada. Por isso, contar com a parceria de outros serviços e convocá-los para atuar conjuntamente na resolução do conflito potencializa a ação e garante a construção de soluções mais efetivas. Se já há um diálogo aberto, essa articulação torna-se ainda mais fácil.

L: Acredito que já avançamos alguma coisa na constituição de redes e de formas de controle social nas políticas públicas em âmbito mais macro, digamos. É necessário também que as diferentes secretarias, no que diz respeito ao município, se articulem e dialoguem melhor entre si, construindo políticas intersecretariais mais eficientes e efetivas.

Além disso, a rede local é capaz de identificar com maior rapidez casos de violações graves de direitos e, assim, acionar e responsabilizar o Estado para que ele exerça seu papel de “cumpridor de direitos”, evitando que se culpabilize um sujeito que na verdade é a vítima.

 

ITTC: O que muda na relação das pessoas com os serviços da rede municipal, quando se adotam práticas de resolução de conflitos fora da esfera penal?

B: O equipamento público é um espaço de garantia de direitos, mas muitas vezes seu funcionamento e organização afasta as pessoas e as faz se sentirem ainda menos reconhecidas. Quando elas são incluídas e a responsabilidade da gestão, da construção das regras, do cuidado e da resolução dos conflitos é compartilhada, essa relação muda. Passa a existir um vínculo permeado pela sensação de pertencimento e familiaridade entre as pessoas. Quando foi publicada a primeira parte de nossa entrevista, compartilhei no facebook e um dos jovens que frequentava o CEU perguntou se nós havíamos contado da experiência do Sarau;  lembrei então da desconfiança inicial que existia da parte deles, dos conflitos, das diversas vezes que optamos por não chamar a polícia mesmo diante de pressões por fazê-lo; isso transformou a relação deles com o espaço e com a equipe.  Eu já não estou na gestão do CEU, mas ele segue lá tendo clareza do seu direito e responsabilidade em relação ao CEU. Serviços públicos não são posses de servidores, eles são da comunidade, nosso papel é torná-la cada vez mais responsável, mais atuante e mais reconhecida nesses espaços, para que, em condições ideais, um dia não sejamos mais necessários nessas funções.

L: Do meu ponto de vista, uma das mudanças essenciais é que os “usuários” ou “atendidos” passam a se considerar cidadãos ou cidadãs, isto é, indivíduos que gozam e lutam pelos seus direitos. Essas pessoas passam, também, a ampliar a construção de suas identidades a partir do sentimento de pertencimento a um coletivo e, portanto, de uma responsabilidade para com esse mesmo coletivo e com a construção dos espaços que pertencem à sociedade. Ou seja, espaços públicos em que todos possam existir de forma democrática.

A experiência do CEU Heliópolis vem nos ensinando que a medida da democracia de uma instituição é exatamente sua capacidade de se abrir para escutar as pessoas que a constroem e que, no fundo, são sua razão de ser. Quando as pessoas param de se ver como inimigas e passam a se considerar aliadas.

“Serviços públicos não são posses de servidores, eles são da comunidade, nosso papel é torná-la cada vez mais responsável, mais atuante e mais reconhecida nesses espaços” Beatriz Besen

 

Beatriz é psicóloga formada pela Universidade de São Paulo. Mestranda em Psicologia Social pela USP e em Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSO, já atuou no setor público, privado e terceiro setor como coordenadora de projetos em educação, cultura e direitos humanos.

 

 

 

Educadora formada em Licenciatura em Arte – Teatro, trabalhou como educadora na EMEF Pres. Campos Salles – escola pública da cidade de São Paulo que desenvolve um Projeto Político Pedagógico democrático e inovador. Atualmente, trabalha na gestão do Centro de Educação Unificado Heliópolis Profª Arlete Persoli na coordenação da área de educação.

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jun 19, 2018 | Noticias | 0 Comentários

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