Por Amanda Rodrigues, Irene Maestro e Mariana Amaral
Este é o último de uma série de três artigos, que buscam apresentar os resultados preliminares da pesquisa Diagnóstico da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o desencarceramento de mulheres, desenvolvida pelo ITTC.
A pesquisa tem como objetivo analisar de que maneira os atores do sistema de justiça criminal (Defensoria, Ministério Público e Magistrados e Magistradas) têm aplicado, ou não, dispositivos desencarceradores. O foco é principalmente a prisão albergue domiciliar, cujas hipóteses previstas no art. 318 do Código de Processo Penal foram ampliadas para gestantes e/ou mães de crianças de até 12 anos ou deficientes, a partir da promulgação do Marco Legal da Primeira Infância.
O primeiro artigo mostrou algumas análises preliminares acerca da pesquisa de campo realizada nas audiências de custódia. O segundo artigo tratou dos processos de 200 mulheres que foram presas e atendidas pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo no Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha.
Agora, serão apresentados os resultados preliminares da terceira etapa da pesquisa. Nela, buscou-se identificar os padrões decisórios de aplicação do Marco Legal nos Tribunais Superiores, antes e depois da decisão do Habeas Corpus coletivo nº 143.641 do Supremo Tribunal Federal, que concede prisão domiciliar a todas as mulheres que se encaixam nos requisitos previstos pela lei.
Universo das decisões analisadas
A equipe de pesquisadoras do ITTC realizou uma pesquisa jurisprudencial para coletar 200 decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre pedidos de prisão domiciliar feitos por mulheres que tiveram tal direito negado no curso de seu processo penal. O marco temporal é de decisões proferidas de 09 de agosto de 2016, dia seguinte à promulgação do Marco Legal da Primeira Infância, a 30 de junho de 2018, data de início desta etapa da pesquisa.
Dessas 200 decisões, 67,5% se referem às decisões do STJ e 32,5%, às do STF. A maioria dos recursos impetrados é Habeas Corpus, e mais de 50% deles se originam do estado de São Paulo.
Quem são essas mulheres?
Todas essas 200 mulheres eram potenciais beneficiárias da concessão da prisão domiciliar: em 184 casos as mulheres possuíam filhos e/ou filhas, em 4 casos eram gestantes, e em 12 casos eram gestantes e mães. Desse total, também há sete que possuíam filhos com deficiência.
Conforme já apontado pelo estudo MulheresSemPrisão anteriormente, na maioria dos casos analisados pela presente pesquisa as mulheres presas eram mães, encontravam-se em regime fechado, não possuíam antecedentes criminais e estavam sendo processadas por práticas relacionadas ao comércio de drogas (65,5% dos casos), no qual geralmente ocupam posições hierárquicas inferiores e papéis secundários. Em geral, essas mulheres são apreendidas com pequenas quantidades de drogas – crime que, frise-se, não é cometido com violência ou grave ameaça.
Ainda, apenas 26% das mulheres foram assistidas pela Defensoria Pública de seus respectivos estados, enquanto 74% das mulheres possuíam advogado ou advogada constituída. Diferentemente do observado durante as audiências de custódia, a maioria das mulheres que alcançaram os tribunais superiores teve condições financeiras (ou encontrou meios) para contratar um advogado ou uma advogada para realizar sua defesa e recorrer ao STF e STJ.
Decisões dos Ministros e Ministras
Dentre as 200 decisões analisadas, em somente 9 foi concedida liberdade (com ou sem medidas cautelares). Nessas decisões, é comum que os Ministros e Ministras não considerem que a prisão cautelar tenha sido ilegal, por supostamente existirem indícios de autoria e prova da materialidade já analisados pelos juízes e juízas de origem.
A prisão domiciliar foi concedida a 116 mulheres, ou seja, pouco mais da metade das decisões. Já as que mantêm ou decretam a prisão cautelar da mulher totalizam 71 casos. Por fim, em 23 foram proferidos outros tipos de decisão, que normalmente se referem a aspectos formais do processo e não ao mérito do pedido feito pela defesa das mulheres.
Influência do HC coletivo do STF nas decisões analisadas
Ao serem analisados os motivos que ensejaram a negativa da prisão domiciliar, pôde-se observar uma mudança na argumentação dos Ministros e Ministras após o HC coletivo do STF. Ao impetrar o HC, o Ministro Lewandowski esclareceu que não deve ser exigida prova da maternidade (e seu exercício), bastando a palavra da mulher para a comprovação de tal situação. Antes disso, de acordo com a pesquisa realizada, 16 decisões apontavam a “Ausência de provas da imprescindibilidade da mulher para os cuidados do(a)s filho(a)s” como fundamento para negação da prisão domiciliar. Após a decisão, esse número caiu para dois casos. Do mesmo modo, o argumento de que “Não há prova idônea da existência do(a)(s) filho(a)(s)”, que antes do HC coletivo foi utilizado para fundamentar a negativa da domiciliar em quatro casos, deixou de aparecer.
A presunção de que “o(a)(s) filho(a)(s) podem ficar sob os cuidados de outros familiares”, havia sido utilizada como fundamentação de 16 dos casos, mas após a decisão reduziu-se para 4 casos, o que pode representar um indicativo de que a decisão do HC diminuiu a margem de discricionariedade das decisões dos Tribunais, fortalecendo a compreensão sobre a importância da insubstituível relação da mãe com os filhos.
Outro argumento que sofreu impactos com a decisão do STF foi a da “Gravidade do crime”. Este argumento foi utilizado 12 vezes antes do HC coletivo e 5 vezes após sua decisão. Segundo entendimento pacificado no STF, a gravidade em abstrato do crime não pode ser utilizada para manter a prisão cautelar. Contudo, normalmente se soma a isso um questionamento sobre a aptidão das mulheres que supostamente cometeram algum crime para o exercício da maternidade. Assim, esse fundamento vem acompanhado de julgamentos moralistas que afirmam que o crime – em sua maioria relacionado ao comércio de drogas – faz com que a presença da mãe seja nociva aos filhos, uma má influência, ou que ela tenha praticado o crime sem pensar neles, entre outras justificativas.
Na mesma esteira, a “Preservação da ordem pública” – conceito extremamente vago e indeterminado e utilizado de forma extremamente maleável pela Justiça para (não) fundamentar a decretação sistemática de prisões – foi utilizado em 13 casos antes da decisão do HC coletivo nº 143.641 e apenas 2 vezes após sua implementação.
Todavia, se a discricionariedade foi reduzida, aumentaram os casos em que os Ministros e Ministras negaram a prisão domiciliar utilizando-se das exceções previstas na decisão do STF: (a) crime cometido com violência ou grave ameaça, (b) crime contra os descendentes e (c) “situações excepcionalíssimas”.
O primeiro argumento (a), que não apareceu nenhuma vez antes do HC coletivo, aparece 12 vezes após sua divulgação. Foi verificado que em seis casos tratava-se de homicídios (um deles supostamente cometido contra vítima que ocupa posição equivalente a descendente – a enteada); um caso de extorsão mediante sequestro; três casos de roubo (um deles com corrupção de menores); e um caso de tráfico com associação para o tráfico. O segundo argumento (b) apareceu duas vezes e somente após o HC, mostrando como sua incidência é significativamente baixa (1% dos casos).
Quanto às “situações excepcionalíssimas” – que, segundo o STF, devem ser devidamente fundamentadas – verificou-se que são utilizadas de forma amplamente arbitrária, normalmente como forma de indicar que, ao cometer crime, a mulher demonstra descaso com os filhos, ou que o tráfico de drogas é situação que impediria a concessão da prisão domiciliar.
É importante salientar que não há qualquer hipótese legal ou critério fixado pela decisão do STF que impeça a mulher que pratica tráfico de drogas, ou que se associa para essa prática, de ter sua prisão preventiva substituída pela domiciliar. Tampouco cabe aos Ministros e Ministras fazerem juízo de valor sobre o exercício da maternidade por parte da mulher.
Vale ressaltar que a nova Lei nº 13.769/18, que incorpora alguma das determinações do HC coletivo ao Código de Processo Penal, deixa expresso que a domiciliar deve ser concedida desde que cumpridos seus requisitos legais, ou seja, não se trata de faculdade do juiz. Foram excluídos somente os casos de prática de crime com violência ou grave ameaça e crimes contra descendente, sem haver menção nenhuma a outras supostas “situações excepcionalíssimas”.
Ainda, há argumentos como “Presença de antecedentes criminais”, “Conduta da mãe coloca em risco os filho(a)s” e “Não há provas da inadequação da unidade prisional para a condição de gestante ou lactante”, que são flagrantemente ilegais, na medida em que inexiste previsão na lei ou determinação do HC coletivo que indique essas hipóteses como motivo para negar a domiciliar.
Além disso, os argumentos são – novamente – marcados por expressiva subjetividade e por (mais uma) penalização, já que a mulher nessa posição é julgada para além da sua suposta conduta ilegal, por romper com a idealização da maternidade socialmente imposta sobre ela. Ainda, desconsideram o estado inconstitucional de coisas no sistema carcerário e o fato de o ambiente prisional ser absolutamente inadequado para a criança em sua primeira infância ou para o desenvolvimento da gestação.
Conclusões preliminares
Pôde-se verificar que o número de concessões de domiciliares nos tribunais superiores é maior do que nas instâncias inferiores. Contudo também é certo que a maioria das mulheres que consegue acessar tais tribunais são mulheres que possuem advogado ou advogada constituída, e não as que são atendidas pela Defensoria Pública. Isso leva a supor que trata-se de mulheres com maior poder aquisitivo, ou que fizeram grande esforço financeiro para conseguir alcançar o STF e STJ, evidenciando que a prisão domiciliar relaciona-se estreitamente com o problema da falta de acesso à justiça.
Também foi possível observar que o grau de discricionariedade dos Ministros e Ministras, ao fundamentar a negativa de concessão de prisão domiciliar, foi reduzido sensivelmente após a decisão do HC coletivo do STF.
Em conclusão, pode-se notar que há maiores chances de alcançar a efetivação do direito à prisão domiciliar nas instâncias superiores, o que por si só significa uma violação de direitos, na medida em que a concessão da domiciliar deve ser garantida bastando a existência dos requisitos objetivos (ser mãe de filhos ou filhas até 12 anos ou com deficiência ou ser gestante – além do caso da mulher estar debilitada por doença grave).