Nota do Projeto Estrangeiras sobre matéria da Veja: As estrangeiras atrás das grades por tráfico no Brasil

O site da revista Veja publicou no dia 4 de julho de 2014 a matéria “As estrangeiras atrás das grades por tráfico no Brasil”, que se encarregou de expor perfis de mulheres estrangeiras presas em São Paulo e analisar as condições de cumprimento da pena para essa população. Procurado pela autora da reportagem, o ITTC apresentou sua experiência de trabalho e se posicionou contra as múltiplas violações a direitos na aplicação da pena a essas mulheres. A posição final da revista, entretanto, mostrou-se tendente a reforçar estereótipos e preconceitos em relação às mulheres acusadas de tráfico de drogas, defendendo ainda que a legislação vigente é muito branda.

O Instituto, que trabalha há 13 anos com mulheres nessa situação e atualmente atende diretamente ao menos 200 mulheres por mês na Penitenciária Feminina da Capital por meio de visitas semanais realizadas pelo Projeto Estrangeiras, entende necessário expor sua oposição às afirmações do artigo e esclarecer tanto o real perfil das mulheres estrangeiras presas por tráfico de drogas como as reais condições de cumprimento de pena enfrentadas por essas mulheres.

Ao longo do período de atuação do ITTC em contato direto e frequente com as estrangeiras privadas de liberdade em São Paulo, foi possível identificar similaridades nos perfis e nos relatos das mulheres acusadas de tráfico internacional de drogas. A grande maioria delas contém histórico de vulnerabilidade social, sendo provindas de famílias em situação de extrema pobreza, das quais frequentemente são as principais provedoras. Ao contrário do que constrói a reportagem, geralmente essas mulheres não são usuárias de drogas, não têm nenhum envolvimento anterior com o tráfico e não fazem parte de organizações criminosas.

O envolvimento dessas mulheres com redes de narcotráfico frequentemente ocorre através de mecanismos muito semelhantes àqueles utilizados em situações de tráfico de pessoas, segundo a definição dada pelo Protocolo de Palermo[1]. Muitas vezes, aliciadores abusam da situação de vulnerabilidade, enganando-as a respeito da atividade que devem realizar ou as forçam, ameaçando inclusive suas famílias no país de origem, para obrigá-las a atuar como “mulas”, carregando drogas entre fronteiras. Nesses casos, o ITTC defende a tese de que essas mulheres acusadas de tráfico de drogas também deveriam ser reconhecidas enquanto vítimas do tráfico de pessoas, o que implicaria em tratamento diferenciado por parte da Justiça em relação a elas[2], menos punitivo e mais protetivo.

Apesar dos argumentos apresentados pelo Instituto, a reportagem reforça o discurso punitivo contra pessoas estrangeiras em situação de prisão, ao acolher a crítica que diz “branda” para a legislação em vigor. Como será demonstrado, essa crítica se equivoca tanto juridicamente, como em sua leitura da realidade. Um dos argumentos utilizados para justificá-la foi que “os presos estrangeiros conseguem progressões de pena”. A progressão de pena, no entanto, é direito advindo do princípio constitucional da individualização da pena, disposto no art. 5º, XLVI, da Constituição Federal, como o Supremo Tribunal Federal já pacificou no HC 82.959/SP. Não é privilégio das estrangeiras que progridam, mas tão somente o mesmo tratamento que deve ser dado em relação às presas brasileiras, sendo vedadas pelo artigo 5º da Constituição as diferenciações arbitrárias entre pessoas brasileiras e estrangeiras no país. O que acontece, na realidade, é que as mulheres presas têm esse direito muito dificultado quando há decreto de expulsão emitido contra elas pelo Ministério da Justiça, mesmo que não haja qualquer previsão legal para tal.

Outro questionamento da matéria, o direito das pessoas estrangeiras de responder ou de recorrer do processo em liberdade não é, como se quis colocar, uma inovação jurisprudencial do STF. A Corte afirma há anos, como se pode notar no HC 94016/SP, que o fato de a pessoa estrangeira detida não possuir domicílio em território brasileiro não legitima a recusa de seus direitos básicos, entre eles a garantia da ampla defesa e da presunção de inocência, dos quais decorre o direito de responder o processo em liberdade. Como a posição da Corte nem sempre é seguida por juízes e juízas, a regularização migratória das pessoas que estão nessa situação é desejável para auxiliar no resguardo desse direito, ao possibilitar acesso a trabalho, saúde e moradia decentes. Como exemplo, há inúmeros casos de mulheres que recorrem em liberdade, mas que sofrem com a falta de documentação, consequência da indefinição migratória experimentada por tal população. Outra importante falha na regularização desse direito é a falta de políticas de acolhimento para mulheres, o que resulta em casos de situação de rua.

Nesta esteira, o que foi chamado de “visto especial” pela matéria nada mais é que uma resolução normativa de abril de 2014[3] que, em uma tentativa de responder às situações irregulares descritas acima, autoriza a concessão de permanência provisória de pessoas estrangeiras no território nacional em virtude de decisão judicial. Um avanço importante, ainda que incompleto por deixar à discrição de juízes e juízas a decisão sobre a concessão e por estar restrito a uma pequena parcela da população estrangeira em situação de prisão no país.

Assim, a frase “a legislação é muito branda” não poderia estar mais longe da realidade. Mesmo com a igualdade defendida pela Suprema Corte, as presas e os presos estrangeiros têm seus direitos no processo penal dificultados por juízes que os consideram privilégios reservados a brasileiros e brasileiras e que esquecem a já questionável finalidade essencial da pena disposta no artigo sexto da Convenção Americana de Direitos Humanos, a readaptação social de qualquer pessoa condenada.


Saiba mais sobre as mulheres “mulas” através da nossa série documental:

[ITTC – Documenta] – Mulheres “Mulas”: Vítimas do Tráfico e da Lei

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jul 25, 2014 | Noticias | 0 Comentários

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