Por Gabriela Cunha Ferraz*
No dia 28 de novembro, o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC e a Rede Justiça Criminal estiveram representados na Audiência Pública de Palmas/TO sobre Sistema Prisional. O objetivo era falar sobre a campanha nacional pelo fim das Revistas Vexatórias[1], a fim de motivar o estado a implementar a já existente portaria da Secretaria de Defesa Civil que tentou abolir, em vão, essa prática. Essa portaria não foi implementada no estado porque o Ministério Público local pediu que o governador sustasse sua aplicação, tendo em vista a suposta inadequação das Unidades Penitenciárias locais.
Apesar de este ter sido o tema focal da discussão, muitos outros assuntos surgiram e foi possível perceber a similaridade entre as reinvindicações trazidas pelas unidades prisionais tocantinenses, cuja população carcerária soma 3.150 pessoas, dos quais 48% são de presos provisórios. Ouvimos relatos de presos que comem macarrão instantâneo misturado com sabão em pó e bebem leite em garrafa de água sanitária. Escutamos familiares que esperam horas sob intensa chuva, na fila, para visitar seus parentes presos e levar itens de higiene básica que não são fornecidos internamente sem que haja qualquer providência sendo tomada para solucionar essas violações. E também presenciamos falas que denunciam casos de tortura praticada contra presos cujos responsáveis permanecem impunes, de ausência de unidades adequadas para os presos em regime semiaberto e de adolescentes que têm acesso ao banho de chuveiro apenas uma vez por semana.
Um dos pontos mais interessantes foi perceber a composição da mesa. Defensoras públicas ferozmente dedicadas e empenhadas em garantir a boa aplicação das leis dividiam a mesa com uma representante da OAB local, com um juiz de execução penal, com a Secretaria de Defesa Social e com a empresa Humanizare, responsável pela gestão de duas unidades prisionais do estado. Importante salientar, no entanto, que o Juiz de Direito que representava o Tribunal de Justiça se ausentou nos primeiros 10 minutos, depois da abertura do evento; o diretor da empresa Humanizare depois de 40 minutos, deixando um advogado em seu lugar; e o Secretário Estadual de Defesa Social se limitou a enviar um representante para o debate. A ausência do Ministério Público foi percebida e, por diversas vezes, mencionada pela população presente.
A privatização de unidades prisionais já é uma realidade no Tocantins e os problemas que advêm delas também. A empresa responsável recebe o repasse estadual de R$ 3.500 mensais por preso, mas, mesmo assim, os relatos de redução no fornecimento de água e corte de custos operacionais foram frequentes. A representante da OAB afirmou que a privatização substituiu agentes penitenciários capacitados por agentes que são contratados pelo Sistema Nacional de Emprego – Sine, e que, portanto, não podem responder a processos administrativos. Em razão dessa facilitação, segundo a OAB, os processos por corrupção de agentes aumentaram em 40% no estado.
O maior sintoma de que esse tipo de gestão é um erro é o “jogo de empurra” de responsabilidades que se estabelece entre a empresa privada e a Secretaria Estadual. Hoje, a unidade prisional administrada pela Humanizare sofre com um grave problema de saneamento. Quando chove, a fossa transborda fazendo com que os resíduos e o esgoto entrem diretamente nas celas e o forte odor impregne todos os espaços dos pavilhões A e B da penitenciária. Todos os envolvidos reconhecem essa realidade, mas a Humanizare alega que o seu contrato de gestão não contempla a realização de obras estruturais. A Secretaria, por sua vez, alega que o contrato foi mal redigido e que não existe recurso financeiro público suficiente para realizar essa obra.
Importante frisar que, de acordo com os dados apresentados, a população carcerária do Tocantins era de 1.600 presos em 2011, tendo alcançado a marca de 3.150 atualmente. Seria muita coincidência afirmar que o regime privado de gestão de unidades prisionais favorece a política de encarceramento em massa, os altos repasses de verba pública para entes privados e a redução dos custos da gestão?
Para além desses fatos, três pessoas chamaram a atenção por trazerem demandas muito concretas. Uma mãe relatou a tortura e a execução sumária do seu filho de 25 anos, morto com uma bala disparada de cima para baixo, tendo em vista que estava ajoelhado aos pés dos policiais que, por sua vez, alegaram agir em legítima defesa. A polícia alegou que o rapaz estava envolvido no roubo de uma caminhonete. Considerando que no Brasil o flagrante é a principal porta de entrada na prisão, em detrimento da investigação policial, e que ainda usamos o tripé probatório – (i) confissão, (ii) “testemunhas de ouvir dizer” e (iii) declaração de policiais para provar a ocorrência dos crimes –, o filho dessa senhora acabou virando bandido e, consequentemente, estatística. Isso acontece todos os dias quando policiais alegam que houve resistência por parte das suas vítimas, mesmo quando ajoelhadas aos seus pés, e por ser esse um argumento tido como válido e incontestável para o processo penal.
Na mesma linha de raciocínio, um militante presente na audiência foi denunciado pelo Ministério Público por dano ao patrimônio. Seu “crime” foi ter feito uma manifestação artística no chão da entrada da Assembleia Legislativa, desenhando croquis de corpos negros assassinados, em favor da aprovação do Projeto de Lei 4471/2012 que prevê o fim dos autos de resistência, hoje em tramitação no Congresso Nacional. Poderíamos alegar liberdade de expressão, de manifestação ou até mesmo o princípio da insignificância em prol da sua absolvição, mas vamos nos restringir a parabenizá-lo pela brilhante atuação política contra esse lamentável ranço de uma época ditatorial.
Outra grande fala da audiência foi a que pedia a legalização e regulamentação da maconha. Jovens militantes da causa avançaram argumentos capazes de comprovar que o princípio ativo da maconha deve ser usado em tratamentos médicos e que a criminalização do uso é fruto de uma construção histórica infundada, devendo essa discussão ser deslocada para a esfera da saúde pública em respeito ao princípio jurídico de que não existe crime na autolesão.
Desta audiência saíram encaminhamentos concretos que objetivam o fim dos autos de resistência, a descriminalização do uso da maconha, a transparência das contas da empresa privada Humanizare, a solução para que sejam disponibilizados bancos e toldos para os familiares de presos que aguardam na fila da visita, a capacitação de agentes públicos e juízes para que o sistema de encarceramento massivo seja repensado, a criação de um grupo de trabalho para facilitar o acesso do preso provisório ao voto e, é claro, o imediato fim das revistas vexatórias no estado.
* Gabriela Ferraz é advogada, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Strasbourg e coordenadora de advocacy do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. Também atua como coordenadora do Cladem Brasil e como advogada da Cáritas Brasileira (SP). Contato: gabrielaferraz@ittc.org.br.