A carne mastigada da juventude pobre: maioridade penal e letalidade policial

Ricardo Urquizas Campello*

Lastimável. Celebrando 51 anos do golpe civil-militar que instaurou duas décadas de aprisionamento, tortura e assassinato de jovens no Brasil, as novas forças conservadoras que compõem o atual Congresso Nacional coroam a data aprovando a possibilidade de se enviar meninas e meninos a partir dos 16 anos de idade ao sistema prisional adulto.

A aprovação da admissibilidade da PEC 171, no dia 31 de março, pela Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara dos Deputados, faz com que a proposta de redução da maioridade penal siga em tramitação, aguardando parecer de uma comissão especial que, depois de votação no Plenário da Casa, segue para nova votação no Senado.

Conforme os discursos proferidos por seus defensores, a medida teria por objetivo combater a impunidade de adolescentes. Parlamentares e chefes de polícia sustentam suas argumentações com base em afirmações tais como: “os adolescentes brasileiros possuem licença para matar”.

Basta, contudo, uma breve aproximação às atuais práticas de penalização de jovens – revestidas pelo rótulo de “sistema de atendimento socioeducativo” – para evidenciarmos a falsidade dessa ordem de discursos.

Não é novidade que as unidades de internação de jovens considerados infratores no Brasil não passam de prisões. Reproduz-se a arquitetura carcerária e os regimes disciplinares penitenciários são aplicados de forma ainda mais dura. Enquanto o juiz é obrigado a prever a duração da pena de prisão aplicada a um adulto, os adolescentes são levados às unidades de internação sem que o prazo dessa medida esteja previamente determinado. A ocorrência de espancamentos cometidos por funcionários tampouco é rara. Mãos às costas, cabeça baixa, tapas, socos e chutes no corpo compõem frequentemente o aparato técnico-pedagógico de tratamento “socioeducativo”. Além disso, os jovens internos e seus familiares passam periodicamente por revistas vexatórias, que expõem e invadem seus corpos nus.

Para esses cárceres juvenis são enviados garotos e garotas a partir dos 12 anos de idade. Além e aquém da lei, é essa hoje a marca fixada na prática como maioridade penal no Brasil.

Ao contrário do que afirmam os entusiastas do endurecimento penal, os jovens trancados nas unidades de internação da Fundação Casa e demais instituições espelhadas no modelo prisional não são pequenos homicidas. Uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), junto ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que, em 2008, 23% dos processos de menores de 18 anos que cometeram ato infracional referem-se a uso ou tráfico de drogas e 46% são condenados por atos contra o patrimônio, ao passo que infrações relativas a lesões corporais não ultrapassam 16%. Dados divulgados em 2010, pela própria Fundação Casa, apontam que 48% das internações no estado de São Paulo referem-se a infrações contra o patrimônio e 37% por tráfico de entorpecentes.

A deflagrada “guerra às drogas” e a defesa incondicional ao patrimônio privado justificam hoje o encarceramento da imensa maioria dos 20 mil jovens presos no Brasil. Sabe-se também que um adolescente pertencente às classes social e economicamente privilegiadas pego consumindo ou portando substâncias ilícitas dificilmente é enviado às unidades de internação. Por seu turno, jovens pobres moradores de bairros periféricos muitas vezes são mantidos encarcerados por meses ou até anos por portarem um cigarro de maconha. A justiça juvenil recruta jovens pobres e isso tampouco é novidade.

Para completar o cenário macabro da relação estabelecida pelas forças de segurança pública com a juventude pobre no Brasil, têm-se os índices alarmantes de jovens assassinados pela polícia. Somente no estado de São Paulo, 78% das pessoas mortas pela polícia de 2009 a 2011 possuíam entre 15 e 29 anos, conforme os dados da Human Rights Watch. O Mapa da Violência, por sua vez, indica que o Brasil mata cerca de 30 mil jovens a cada ano.

Cabe reformular a questão, dirigida agora a operadores da justiça e segurança pública, bem como aos legisladores da bancada da bala: quem possui licença para matar?

Ancorados na doutrina da segurança e na falácia da impunidade – argumento dificilmente aceitável no terceiro país que mais prende gente em todo o planeta – deputados se mostram empenhados em amontoar mais e mais corpos vivos nos depósitos penitenciários que se espalham pelo país. E o alvo sempre iminente é a carne fresca de jovens pobres a ser triturada pela máquina carcerária em funcionamento expansivo.

A aprovação da PEC 171 pela Comissão de Constituição e Justiça revela a face tirânica da democracia neoliberal brasileira, com sua combinação funesta de valores conservadores, endurecimento penal e letalidade policial. Mostra que o compromisso incondicional de grande parte dos homens democraticamente eleitos a ratificarem suas leis no parlamento brasileiro fomenta uma mecânica perversa de extermínio e detenção dos miseráveis. Cada vez mais jovens.

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* Doutorando em Sociologia na FFLCH/USP e mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. Pesquisador colaborador do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC e autor do livro Política, direitos e novos controles punitivos: o monitoramento eletrônico de presos.

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maio 20, 2015 | Sem categoria | 0 Comentários

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