Antirracismo para além do 20 de novembro

O povo brasileiro tem uma longa experiência no combate permanente que trava com as classes dominantes, visando obter o triunfo da democracia (não a democracia burguesa formal, mas aquela que mais perto diz respeito à realidade econômico-social) e, simultaneamente, objetivando chegar ao aniquilamento do imperialismo e do latifúndio. (Carlos Marighella)

Ágatha Miranda, com colaboração de Marcos Amaral*

Nos últimos anos tem se apresentado na América Latina forte ascensão do ultraconservadorismo. De maneira geral, se percebe que os países que conseguiram avançar em desenvolvimento social a partir de políticas inclusivas, e que pautam igualdade entre as pessoas, têm sofrido com a fúria daqueles que não pretendem prolongar essas mudanças. Os golpes de Estado reforçam que as democracias em terras latinas ainda não foram experienciadas. As violações de direitos são diversas: desastres ambientais, falta de acesso às condições de saúde e educação que foram prejudicados, ou seja, a manutenção dessas vidas é impossibilitada nestes projetos. Na história do Brasil não seria diferente.

16 de novembro de 2019, 33° rodada do Brasileirão, Santos x São Paulo, um clássico que ocorreu na casa do Santos Futebol Clube, a Vila Belmiro. A numeração das camisas  dos jogadores santistas denunciava em números o impacto do racismo brasileiro na vida de pessoas negras, explicitando a desigualdade entre brancos e negros. Nesse mesmo dia, contrariando a vontade do técnico argentino Jorge Sampaoli e de grande parte das torcidas organizadas do clube, o Santos recebeu em seu camarote o político eleito presidente da República, reconhecidamente racista. Essa cena sintetiza o modo como o Brasil vem lidando com a desigualdade racial: de um lado avança nas políticas públicas específicas para essa população, de outro, avança em um projeto estatal genocida contra essa mesma. O mito da democracia racial não foi superado na subjetividade do brasileiro, e vemos um processo de aniquilamento dessa população, principalmente da juventude negra.

Reprodução/Santos

Este país foi um território de acumulação primitiva de capital que, junto com outras colônias europeias, sustentaram a formação e o desenvolvimento do modo de produção capitalista. A partir da crise do modelo escravocrata, houve grande contingente de imigração de trabalhadores assalariados não negros para ocupar o lugar dos que haviam sido escravizados, os quais após a abolição foram excluídos do mundo do trabalho e, consequentemente, não tiveram acesso a espaços de direitos, o que corroborou estruturalmente com a desigualdade racial. Historicamente, portanto, o Brasil traz antagonismos de classe estruturais muito claros. O projeto de genocídio existe harmoniosamente na sociedade brasileira, entre muros, favelas, prisões, manicômios e uma elite atrasada que traz a herança de uma riqueza produzida por corpos negros. O processo de escravização produziu herança para negros e brancos, sem dúvida, mas uma raça ficou com todo o bônus e a outra com o ônus, e esse impacto tem atravessado gerações.

Após muita luta e resistência do Movimento Negro organizado, passamos por uma década de tímida melhora. O Brasil passou por um momento importante de redução da desigualdade, redistribuição de renda e inclusão. O Atlas da Desigualdade Social no Brasil mostra que na última década melhoramos nos índices de pobreza, emprego, desigualdade, alfabetização, escolaridade e juventude. Apesar disso, nunca se encarcerou tanto a população negra. O tímido avanço que convive com o aniquilamento de corpos negros faz com que os retrocessos aprofundem a desigualdade racial , tanto que estamos retornando ao Mapa da Fome e da Miséria no Mundo, lugar do qual havíamos saído há pouco mais de cinco anos, por meio de políticas públicas como o “Fome Zero” e o “Bolsa Família”, que permitiram um crescimento da economia e da renda dos 20% mais pobres.

Apesar de mudanças, as hierarquias raciais se mantêm estáveis ao longo dos anos. Nota técnica produzida pelo IPEA, a partir do PNAD 2014, mostra que o rendimento médio do brasileiro vinha melhorando, mas no topo da estrutura, com rendimento médio maior, está o homem branco e no último degrau a mulher negra. Ou seja, apesar da redução do número de pessoas desempregadas, aumento real do salário mínimo e de pessoas com carteira assinada, estruturalmente nada havia mudado, a hierarquia homens e mulheres, brancos e negros permanece estável. A população negra é sobrerepresentada na pobreza e subrepresentada nos centésimos mais ricos, a pobreza é negra e a riqueza é branca. Desigualdade social e desigualdade racial estão tão intrinsecamente relacionadas que não deveriam ser sinônimos, se o país não fosse tão racista a ponto de escamotear o racismo que estrutura o país.

Neste momento histórico, a distância entre brancos e negros se aprofunda. Com aumentos exorbitantes de desempregados e processo de uberização do trabalho, que atinge prioritariamente as pessoas negras. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os maiores afetados com o avanço de desemprego são pessoas pretas e pardas.

O Atlas da Violência 2019 ratifica o aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil:

“Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros (definidos aqui como a soma de indivíduos pretos ou pardos, segundo a classificação do IBGE, utilizada também pelo SIM), sendo que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0”.

O estado que tem explicitado esse dado publicamente é o Rio de Janeiro, onde o Estado tem assassinado à luz do dia crianças e adolescentes em comunidades. É importante ressaltar que o projeto genocida não se encerra com um corpo morto, mas esse corpo tem família, amigos, irmãos, mães que seguirão com sequelas profundas.

É preciso ser antirracista. Pessoas negras e pessoas brancas que estão na luta por uma nova sociedade carregam a obrigação de discutir racismo e, mais que isso, afinar à prática o discurso antirracista. O que vemos no Brasil é um quadro de desmontes de políticas públicas que dão aos pobres, às mulheres, à população LGBT e à população indígena condições mínimas de vida digna. Há um pacote de “reformas” em andamento que nos desloca à marginalidade, à vida miserável e permeada por escassez. Tais projetos, como a reforma trabalhista, a reforma da previdência, projetos de privatizações de empresas estatais, sucateamento dos aparelhos de assistência social e do setor da saúde, caminham contra o benefício do povo. Em outras palavras, o brasileiro não está apenas desamparado, mas é alvo das violências institucionais que, em última instância, nos afastam de nossa humanidade.

Importante destacar um dos projetos de governo que consegue atravessar relevantes questões econômicas e sociais: o pacote anticrime. Forjado numa proposta populista de combate à corrupção, este projeto sucintamente pode ser definido como um instrumento de legalização de práticas institucionais racistas, sobretudo as comuns do Poder Judiciário. Práticas que, a partir da vigência deste projeto, não serão somente legitimadas, mas legalizadas, ou seja, o Estado terá autorização para agir violentamente contra o povo preto.

A atual conjuntura política, social e econômica nos coloca, mais que em outros momentos, em um lugar de elaboração dura da realidade. 20 de novembro de 2019 nos traz o dever de colocar o racismo como centro de todos os debates e projetos políticos que minimamente se pretendam sensíveis às pautas de direitos humanos. Neste ano, o dia 20 marca a necessidade urgente de pensar em saídas para garantir que a vida de crianças e jovens – como Ágatha Félix, Diogo Coutinho, Lucas Monteiro, Gabriel Pereira Alves, Ketellen Umbelino e Davi Gabriel Nascimento dos Santos – não seja abreviada de maneira precoce e violenta. Para isso, imprescindível que sejam repensadas as políticas de segurança pública e de drogas, o papel e a responsabilidade do Poder Judiciário na manutenção do racismo institucional no Brasil. Esses debates e atuações precisam contar com a presença e participação ativa e direta de pessoas negras, para que seja possível construir projetos que compreendam a realidade.

* Ágatha Miranda é advogada com experiência em direitos humanos e colaboradora do ITTC.
Marcos Amaral é psicólogo e mestre em Psicologia da Educação, com pesquisas sobre questões relacionadas à desigualdade, educação, sexo/gênero, sexualidade e relações raciais.

 

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nov 20, 2019 | Artigos, Noticias | 0 Comentários

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