Até hoje eu me sinto presa¹

Breve relato de um grupo focal com mulheres que passaram pelo cárcere

Heloisa de Souza Dantas, Psicóloga

Meryleen Mena, Antropóloga

Infelizmente você fica marcada… Eu tenho amigos  que depois que eu saí, eu vejo o olhar pra mim. Outros não, tem pessoas que chegam, chora, abraça, você não merecia tá ali. E tem outras pessoas que …conhece todinha a minha vida e me olha com o olhar até diferente, mas, meu, por quê? Porque você passou pelo sistema (Bethânia, 40 anos²).

Em março de 2017, como parte de uma pesquisa de doutorado sobre as experiências das mulheres no sistema carcerário em São Paulo, realizamos um grupo focal com três mulheres que haviam passado pelo sistema prisional. As perguntas tinham como objetivo compreender os possíveis efeitos do cárcere na vida das participantes e as percepções que tinham sobre os efeitos do encarceramento para as demais mulheres que conviveram durante a prisão. O grupo ainda contou com a participação de duas mulheres que prestavam suporte voluntário às mulheres no cárcere, sendo uma da Pastoral Carcerária e outra de uma ONG feminista.

No início do encontro, as entrevistadas esclareceram que elas não representavam a maioria das mulheres que conheceram, já que possuíam familiares que acompanhavam os processos, além de receber visitas na prisão. A grande preocupação se dava com mulheres que acabavam ficando esquecidas no cárcere.

Que nem a Maria, ela é uma pessoa que além de sofrer pela falta de família, pela falta de apoio, e pela falta do judiciário em acompanhar o caso dela, ela também sofre por umas outras situações dentro da unidade… a gente tem família, a gente tem uma educação… por mais que a gente estava lá naquele lugar existe esse diferencial e…ela não tinha ninguém por ela, era uma pessoa assim, que te dói,  porque acaba tendo vícios e acaba fazendo coisas que não devem pra sustentar aquele determinado vício, e aí vem a punição de dentro, da convivência mesmo que existe suas regras, aí se a pessoa foge daquela regra, claro que vai ter as suas consequências, então assim, tudo por conta de não ter um apoio (Lisa, 32 anos).

Histórias como a de Maria foram mencionadas algumas vezes ao longo das três horas de conversa, costuradas pelos inúmeros relatos de violência e desamparo que atingem as detentas. Dados do DEPEN revelam que em 2014 havia 37.380 mil mulheres no sistema prisional (INFOPEN Mulheres, 2015). Em 2016 essas informações foram atualizadas, totalizando 44.721 encarceradas, havendo um aumento de 698% em 16 anos, sendo que 43% estão aguardando julgamento (Agência Brasil, 2017). O perfil dessas mulheres revela claramente a seletividade penal do país: 50% são jovens (possuem entre 18 e 29 anos), 68% negras e 50% não concluíram o ensino fundamental (INFOPEN Mulheres, 2015). A questão de gênero por sua vez é um fator central para compreender relações de poder que marcam as experiências antes e depois do cárcere. Uma das grandes queixas das participantes do grupo era a maneira como elas e outras mulheres eram tratadas pelas funcionárias responsáveis pela segurança local, geralmente mulheres jovens, como também pela falta de atendimento às questões de saúde:

O sistema é falho. Às vezes o próprio comando (referindo-se ao Primeiro Comando da Capital – PCC) te favorece mais…porque assim, se você está dentro de um sistema pra você se reeducar e você se restabelecer, você consegue reequlibrar sua vida ali pra ressocialização, pra você sair…. mas, não educa ninguém. Pra você ter noção no segundo dia a gente teve um banho de sol no estágio…e tinha uma menina (referindo-se à funcionária) que encostou a gente no paredão, todo mundo em um alambrado e falou assim: “vocês são um bando de puta”. Vocês ficam seu bando de puta, e aí começou falar, mas muito… (Lisa, 32 anos).

Eu já morava no primeiro andar que é onde o pessoal trabalha, tem uma ocupação (referindo-se ao semi-aberto), então ali você vê muito mais descaso, muito mais coisas assim tipo, pequenas coisas que podiam ser diferentes, né?… Eu tenho diabetes, teve um sábado que eu fui tomar banho, eu tinha visita no outro dia, eu falei vou me depilar, tá muito calor e acabei cortando uma veia minha, quando eu olhei no chão do banheiro, o chão estava assim alagado. Ensopado de sangue, né? Aí fiquei com medo, abri a porta e chamei uma companheira lá pra me ajudar e acabou vindo as senhoras. Gente, vocês precisam ver o descaso, tipo elas olharam e tipo como tinha muito sangue, não deu pra ver onde era o corte. Elas olharam assim, elas tipo, sabe, tanto fez… a funcionária. Quer dizer, não me levaram para a enfermaria, eu falei que eu tinha diabetes, então em função disso, você fica com medo. Isso foi em um sábado, no sábado eu pedi atendimento não me deram, no domingo eu pedi atendimento não me deram, na segunda não me deram atendimento, na terça a disciplina lá do primeiro anda viu minha perna… ela que foi atrás de um suporte pra mim. Aí eu fui na enfermaria, me deram gazes… Então é muito descaso, é muito descaso… (Bethânia, 40 anos)

Além de mencionarem a falta de atendimento às questões básicas de saúde, as entrevistadas falaram sobre a dificuldade de suportar o sistema sem “surtar” (expressão por elas utilizada). O “surtar” está relacionado diretamente a uma expressão que demonstre o desespero da pessoa, podendo ser por meio de gritos, tentativas de suicídio ou auto-lesão (ex. se jogar da escada e se cortar). Para elas, é muito difícil a pessoa permanecer no ambiente prisional sem ter um surto em algum momento:

Então, assim…às vezes, tinha uns… uns surtos, mas eu, eu ficava assim tipo desesperada, olhava aquela grade assim, fechada, olhava aquela grade e pensava, meu Deus o que eu estou fazendo aqui? Aí dá vontade de gritar, fazer qualquer coisa. Só que aí você tem que ter o autocontrole, se eu gritar eu vou pro castigo, se eu for pro castigo eu vou demorar mais tempo pra ir embora (Bethânia, 40 anos).

O sofrimento mental e seus desdobramentos ainda parece ser profundamente negligenciado no caso de pessoas privadas de liberdade. No Brasil, as evidências disponíveis, que são escassas, apontam que a saúde mental de pessoas encarceradas é pior do que a da população geral. Isso foi confirmado em uma amostra representativa do estado de São Paulo (ANDREOLI et al., 2014) e em um estudo feito em Salvador, BA (PONDÉ, FREIRE E MENDONÇA, 2011). Também há evidências de que pessoas que ingressam no sistema prisional e fazem uso problemático de drogas têm chances de piorar sua saúde mental significativamente, tenham ou não acesso às substâncias de abuso (DOLAN et al., 2005, RAMSAY, 2003).

Todas as entrevistadas revelaram que as marcas da prisão ultrapassaram em muito o tempo que ficaram privadas de liberdade fazendo com que o retorno para uma vida civil “normal” seja quase impossível. As diferentes restrições têm uma influência importante em seu curso de vida, incluindo multas relacionadas aos crimes cometidos, necessidade de apresentar atestados de antecedentes criminais e o próprio preconceito. É possível se pensar que um dos maiores sofrimentos das egressas é o estigma e a anulação da própria cidadania que as faz continuar “pagando” fora da prisão pelos crimes cometidos.

… é como pegar um passarinho enjaulado e levar pra casa, você acha que você vai acabar com esse sentimento, não…. é dolorido, é sofrido, por mais que a gente tenha o apoio de família e tudo, mas eu, eu amo trabalhar, eu amava trabalhar, eu amava, tá? Adoro política, tiraram meu direito de votar. Você se sente um lixo (Mô, 53 anos).

….o preconceito de você ter a sua vida exposta,  porque assim, eu trabalhava em uma escola particular e não era só pelo trabalho em si, assim eu ajudava abrigo, ajudava pessoas por causa do meu trabalho. E envolvia crianças e me tiraram tudo isso, sabe, eu não posso voltar, porque vazou a informação que eu estava presa, o preconceito dos pais… (Lisa, 32 anos)

E ai você fala assim, eu tenho potencial para aquilo (trabalho que estava tentando), eu sei que eu posso fazer, eu quero e eu consigo. E a pessoa simplesmente fala, inventa um desculpa esfarrapada e você quer saber da verdade, mas você não pode acusar ninguém,você não tem como provar, e você sai totalmente desmoralizada. Eu fui totalmente, acabou pra mim, você morre ali. Aí aquilo, dia a dia, vai te matando (Lisa, 32 anos).

Como afirma Gilmore (1999), a prisão não é um lugar de reabilitação, mas sim uma geografia espacial que gera incapacidade. A incapacitação pode ser engendrada por meio da violência psicológica, bem como a violência física que as pessoas são submetidas. Como tal, as falas das mulheres em sua experiência de encarceramento muitas vezes gira em torno do processo físico e psíquico de desumanização que sofreram durante o período na prisão. Após a experiência do cárcere, essas mulheres continuam desamparadas, sem o apoio de políticas específicas para suas necessidades, ampliando a fragilidade dos laços sociais e a dificuldade para conseguir um novo lugar. No final de nossa reunião naquela manhã, Bethânia, Mô e Lisa disseram que acharam importante comparecer ao grupo para que outras pessoas saibam qual é a realidade das pessoas que passam pelo sistema prisional, com a esperança de que talvez possam contribuir para haver mais justiça e dar voz a quem não pode falar, as chamadas “esquecidas” como elas mencionaram.

Agradecimentos

Agradecemos imensamente a Geralda Ávila que incansavelmente se dedica ao trabalho com as mulheres presas pela Pastoral Carcerária e às mulheres que dispuseram seu tempo para compartilhar conosco suas experiências no cárcere. Também agradecemos a Juliete Vitorino que ajudou com as transcrições.

Notas

[1] Fala de uma das entrevistadas no grupo focal realizado em março de 2017.

[2] Os nomes das participantes e de outras mulheres foram alterados para preservar suas identidades.

Referências

AGÊNCIA BRASIL. População carcerária feminina cresce 700% em dezesseis anos. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-08/populacao-carceraria-feminina-cresce-700-em-dezesseis-anos-no.  Acesso em 20 de novembro de 2017.

ANDREOLI, S. B. et al. Prevalence of Mental Disorders among Prisoners in the State of Sao Paulo, Brazil. PLoS ONE, v. 9, n. 2, p. e88836, 14 fev. 2014.

DOLAN, K.A. et al. Four-year follow-up of imprisoned male heroin users and methadone treatment: mortality, re- incarceration and hepatitis C infection. Addiction, 100, 820-8. 2005.

GILMORE, R. W. You Have Dislodged a Boulder: Mothers and Prisoners in the Post Keynesian California Landscape. Transforming Anthropology. 8, p. 12-38, 1999.

INFOPEN MULHER. Levantamento de Informações Penitenciárias. Mulheres. Junho de 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf. Acesso em em 19 de novembro de 2017.

PONDÉ, M. P.; FREIRE, A. C. C.; MENDONÇA, M. S. S. The prevalence of mental disorders in prisoners in the city of Salvador, Bahia, Brazil. Journal of forensic sciences, v. 56, n. 3, p. 679-82, 2011.

RAMSAY, M. Prisoners’ Drug use and Treatment: Seven Research Studies. Home Office Research Study 267, London, Home Office. 2003.

 

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dez 19, 2017 | Noticias | 0 Comentários

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