O que acontece quando o direito à maternidade é respeitado

O Marco Legal da Primeira Infância é uma lei que tem por objetivo garantir o exercício da maternidade para mulheres em conflito com a lei e a proteção integral à criança, já que a pena determinada à mãe não deve se estender a ela.

A lei potencializa a análise das questões de gênero, especialmente as decorrentes da maternidade, que se consubstanciam, no âmbito do sistema de justiça criminal, com outros aspectos diferenciais como raça/cor, etnia, classe social, nacionalidade, orientação sexual, capacidade física, idade, entre outros.  

Assim, além de identificar os obstáculos e resistências à aplicação dessa lei, o ITTC, com a pesquisa Diagnóstico da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o desencarceramento de mulheres buscou visibilizar decisões favoráveis que incorporam as determinações do Marco Legal e que podem e devem servir de referência.

 Algumas decisões analisadas pelo estudo mostram casos em que as Magistradas e Magistrados levam em conta as especificidades da maternidade para conceder a prisão domiciliar, ou mesmo a liberdade, àquelas mulheres potenciais beneficiárias da lei. Abaixo estão alguns exemplos:

Crime cometido sem violência ou grave ameaça. Ré primária e que comprovou documentalmente duas situações, prole com idade inferior a 12 anos e que se encontra grávida. Se bem verdade que o juiz pode conceder a prisão domiciliar, diante do cumprimento de alguns requisitos, como bem fixado na r decisão de fls., não verifico notas hábeis no feito que a ré fosse uma genitora alheia e despreocupada com sua prole. A conduta criminosa apreciada, por vezes, passa ao largo de um cotidiano de intimidade familiar que se desconhece e bem por isso deve ser prestigiada a manutenção do vínculo familiar. Nessas condições, nos termos do art.317 e 318, IV e V do Código de Processo Penal, concedo à ré (…) a prisão domiciliar (…) (grifos nossos)

Nesse sentido,a acusada comprovou possuir um filho, atualmente com 2 anos de idade, e que está sob os cuidados da avó. Ademais, é inegável a “imprescindibilidade” da presença da mãe para uma criança de apenas 2 anos de idade, o qual não possui nenhuma culpa quanto aos atos e condutas reprováveis praticados por sua 80 genitora. Tal fato, somado a doutrina da proteção integral e o princípio da prioridade absoluta, previstos no art. 227, da Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e ainda na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, autorizam a concessão desta medida substitutiva. (grifos nossos).

A pesquisa identificou também que, muitas vezes, se há uma real preocupação com a preservação do vínculo entre mãe e crianças, juízes e juízas optam pela liberdade provisória, levando em conta as condições específicas da mulher e a proteção da infância e da maternidade. São exemplos disso os dois casos abaixo, extraídos de decisões analisadas pela pesquisa: 

Irei conceder a liberdade provisória por ser réu primária, por não ter cometido crime de grave ameaça e por ter uma filha de 2 meses ainda em fase de amamentação que está sob seus cuidados, logo, não há necessidade de conversão da prisão em flagrante para a preventiva para que seja convertida em domiciliar. 

No caso vertente, o presente benefício [a liberdade provisória] se mostra mais adequado, justamente com a imposição das medidas cautelares, que certamente conduzirão a acusada ao comportamento mais condizente com a gestação. 

No caso dos autos, verifica-se que a presa de fato pode ser beneficiada pela decisão proferida no HC 143.641-SP já que está sendo acusada de crime cometido sem violência ou grave ameaça, possui filhos de até 12 anos de idade e não é reincidente específica. Não obstante, considerando a primariedade da ré e, tratando-se de crime praticado sem violência ou grave ameaça, entendo possível a concessão de liberdade provisória à ré o que lhe será salutar até mesmo para que possa oferecer os cuidados necessários a seu filho. (grifos nossos) 

Em outro caso, uma das pesquisadoras acompanhou uma mulher de 50 anos e mãe de 6 filhos, dos quais cuidava sozinha. Ela nunca tinha sido presa antes e estava em audiência de custódia por ter sido presa em flagrante por supostamente cometer o crime de tráfico de drogas. Por preencher os requisitos dispostos na lei, uma vez que alegou que entre seus filhos havia crianças menores de 12 anos, a juíza concedeu a liberdade provisória com o seguinte argumento: 

(…), a prisão domiciliar obstaria a mãe de sustentar seus filhos (o pai se encontra preso), impedindo-se, ademais, do exercício das tarefas cotidianas.  Desarte, concedo a liberdade provisória (…). (grifos nossos)

Dessa forma, o ITTC defende a aplicação do Marco Legal da Primeira Infância e o fortalecimento da prisão domiciliar para afastar do cárcere a maternidade e o desenvolvimento da criança. Contudo, entendemos que a prisão domiciliar segue sendo uma prisão, e impede a mulher de desenvolver uma série de atividades necessárias ao seu sustento e cuidados de si e de seu círculo familiar e comunitário. 

Assim, a liberdade deve ser a regra, tendo em vista, ademais, que a maioria das mulheres sequer deveria estar presa provisoriamente, já que seus crimes foram cometidos majoritariamente sem violência ou grave ameaça, com penas menores de 4 anos, e que não possuem condenação anterior.

A liberdade é condição fundamental para que as mulheres tenham melhores condições e oportunidades para romper com o ciclo de vulnerabilidades em que estão inseridas, e o Marco Legal, se realmente incorporado nas análises dos processos judiciais, pode fortalecer o desencarceramento feminino.

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out 3, 2019 | Artigos, Noticias | 0 Comentários

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