ITTC Analisa: Infopen Mulheres 2016 e marcadores sociais da diferença

Neste último texto da série ITTC Analisa, a equipe multidisciplinar de pesquisadoras do Instituto abordará o perfil da população carcerária feminina brasileira, apresentado pelo Infopen Mulheres 2016, dando ênfase aos marcadores sociais da diferença.

Elementos como raça, classe, sexualidade, nacionalidade, etnia, idade e deficiência são trazidos pelo relatório e constituem informações de suma importância para a construção de um panorama que retrate a pluralidade das mulheres encarceradas. Dentro desse panorama, a equipe propôs uma leitura da seletividade penal, ao mesmo tempo em que reforça a necessidade de garantia de direitos específicos, previstos em leis, para mulheres cujos perfis se enquadram nesses marcadores.

O Infopen Mulheres 2016 apresentou o perfil geral das mulheres encarceradas, salientando que são principalmente negras (62%), solteiras (62%), mães (74% têm pelo menos um filho), jovens (50% têm entre 18 e 29 anos) e de baixa escolaridade (apenas 15% concluiu o ensino médio). Ainda que o relatório em questão não forneça informações sobre a situação econômica dessas mulheres, o trabalho realizado pelo ITTC no sistema prisional feminino permite afirmar que elas fazem parte da população brasileira de mais baixa renda, comumente às margens dos postos de trabalhos formais e/ou qualificados.

Na pesquisa Tecer Justiça do ITTC de 2012, 38% das mulheres encarceradas entrevistadas em São Paulo estava desempregada. Já o relatório MulhereSemPrisão, pesquisa mais recente realizada em São Paulo em 2017, aferiu uma porcentagem de 40% de mulheres desempregadas, em um universo de ocupações que circulavam entre profissionais do comércio (8,7%), de serviços diversos de baixa qualificação (8,7%), profissionais de beleza (5,2%) e profissionais de limpeza (5%).

Um dos pontos que chama atenção no relatório, e que tem sido debatido em espaços políticos e acadêmicos, é a questão racial. No Infopen Mulheres de 2014, o percentual de mulheres negras encarceradas era de 68%, em comparação com 62% no último Infopen. No caso masculino, o ano de 2014 indicou 67% de homens negros, e, em 2016, 64%. Ainda que os dados apresentem uma leve redução na taxa de pessoas negras em privação de liberdade, não há como ignorar o fato de que elas seguem compondo a maioria histórica da população prisional. Mais do que isso, é essa parcela da população que está mais vulnerável a contextos de violência. O Atlas da Violência de 2018, publicado pelo IPEA, dedica um capítulo à violência contra negros devido à forte concentração de homicídios dessa parcela da população. O relatório comenta que, em 2016, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes superior a de não negros (40,2% contra 16,0%), e que, no caso das mulheres negras, essa mesma taxa foi 71% superior à de mulheres não negras.

A apresentação desses dados é de suma importância para se discutir a desigualdade racial perpetuada no país. O sistema de justiça criminal, enquanto engrenagem de controle e punição diretamente articulada com a atuação policial seletiva, também opera com critérios específicos na consideração de quem é suspeito, quem deve ser mantido em prisão provisória e quem são aqueles que, em geral, são considerados criminosos. Em termos práticos, isso significa dizer que os critérios utilizados por policiais, juízes e promotores seguem sendo fortemente atravessados pelas clivagens de classe e raça no processamento de fatos de natureza criminal e, consequentemente, na seleção daqueles sujeitos para os quais a resposta encarceradora é destinada.

Outro ponto abordado pelo Infopen Mulheres 2016 que merece destaque são os números relacionados às mulheres estrangeiras. O relatório adotou como critério de caracterização dessa coletividade a origem continental. Segundo o relatório, há 529 estrangeiras presas em todo o país, sendo 61% delas oriunda do continente americano, 23% do africano, 9% do europeu e 7% do asiático. Embora no relatório não estejam explicitadas as razões para a adoção do recorte continental, é inegável afirmar que essa escolha metodológica acaba por obscurecer a multiplicidade de nacionalidades dessa população, o que impede a elaboração de uma análise das desigualdades globais, bem como das transformações de práticas de controle e penalização no contexto da “guerra transnacional contra as drogas”.

O ITTC trabalha com mulheres migrantes privadas de liberdade há mais de 15 anos em São Paulo, estado responsável pelo aprisionamento de 63% de toda a população estrangeira feminina no país. Seu banco de dados – recentemente construído com informações coletadas desde o início do Projeto Estrangeiras, entre os anos de 2004 e 2018 – aponta para um perfil que, guardada as devidas especificidades, se assemelha ao perfil das mulheres presas brasileiras: 58% são negras, 51% estão em empregos informais, 37% não completaram o ensino médio, 78% têm filhos e 68% são solteiras, separadas ou viúvas. Na tabela a seguir, constam, em ordem decrescente, as 15 nacionalidades com maior número de presas nas últimas duas décadas:

Tabela: principais países de origem das migrantes presas em São Paulo entre 2004-2018 (fonte: ITTC)

A Bolívia e a África do Sul são os dois países que aparecem com maior expressividade, mantendo uma porcentagem constante de mulheres encarceradas ao longo dos anos, principalmente de 2009 a 2018. Outros países adquiriram expressão em certos períodos, tal como Angola, entre 2010 e 2012, as Filipinas, entre 2009 e 2010, e, ainda, a Venezuela que, entre 2015 e 2018, experimentou um crescimento de mais 50% no aprisionamento de suas nativas– uma variação que pode operar de acordo com as conjunturas sociais, políticas e econômicas dos países envolvidos no trânsito, ainda que o perfil das mulheres escolhidas (comentado acima) seja sempre o mesmo.

Acusadas por crimes relacionados ao tráfico de drogas – são 80% dos casos – essas mulheres encontram-se inscritas em certas rotas de migração com a função de transportar todo o tipo de produto, tais como roupas, produtos de beleza, joias, dinheiro e drogas, atuando, assim, na condição de mulas. Comumente envolvidas em atividades flutuantes de setores informais da economia, nessa condição elas transitam por entre condições incertas de trabalho e expedientes de sobrevivência mobilizados conforme o momento e as situações.

Ao ocupar uma das posições mais baixas na cadeia do tráfico, vemos um aumento desproporcional do aprisionamento de mulheres migrantes, turistas ilegais e vindas de países do chamado “sul global”. Trata-se de mulheres que trazem em seus corpos as marcas das desigualdades de classe, raça e gênero, e, não raro, experimentam situações graves de coerção, violência e vulnerabilidade. Há casos que chegam a incluir práticas associadas ao tráfico de pessoas, o que não necessariamente garante a absolvição ou penas menores para as mulheres que se vêem na condição de vítima.

Além das estrangeiras, o Infopen aborda igualmente a quantidade de mulheres indígenas aprisionadas por estado no país. Chama atenção o baixo percentual desse contingente em diferentes estados, inclusive naqueles onde as disputas agrárias se encontram no cerne da política. O Mato Grosso do Sul, por exemplo, estado com graves conflitos de terra, apresenta, entre as mulheres aprisionadas no estado, somente 1% de indígenas. Já o Tocantins, igualmente marcado por conflitos dessa natureza, apresenta o maior percentual nacional, atingindo 5%.

Um dos pontos importantes sobre as mulheres indígenas em cumprimento de pena, e que merece atenção na análise do Infopen, refere-se ao modo pelo qual a coleta dessas informações é realizada. Como o próprio relatório assinala, a classificação étnica é feita de maneira arbitrária pelos gestores das unidades prisionais, a despeito dos parâmetros internacionais que prevêem a autodeclaração como norma para pessoas pertencentes a povos e comunidades indígenas.

Além disso, o desconhecimento sobre os seus direitos e o receio de retaliações discriminatórias compõe um cenário complexo que deve ser levado em consideração na coleta dessas informações. Sem a identificação nos documentos processuais, essas mulheres ficam à margem dos seus direitos estabelecidos em lei, que são: o direito de se expressar em língua materna; atenuações específicas da pena e o recebimento de alternativas ao encarceramento, como o regime de semiliberdade em órgão indigenista próximo a sua comunidade de origem.

Como essas questões não vêm sendo enfrentadas na produção da classificação, nem sendo, esta última, orientada pelos parâmetros da autodeclaração, o baixo percentual de mulheres indígenas presas apresentado nos dados oficiais tende mais a ser um produto da invisibilização das características dessa população, a partir dos métodos de coleta, do que o não aprisionamento delas pelo Estado.

Ao analisar o perfil das mulheres encarceradas apresentado pelo Infopen Mulheres, portanto, dois pontos nos chamam atenção: o primeiro diz respeito aos efeitos da definição do método de pesquisa na construção dos dados – os meios de coleta e organização das informações podem gerar a visibilização ou a invisibilização de determinados grupos, bem como das categorias de diferença que os atravessam.

O segundo ponto diz respeito ao potencial desse relatório na busca pela efetiva garantia dos direitos da população carcerária, a começar pelo reconhecimento oficial dos diferentes grupos que a compõe. Esse reconhecimento é ponto de partida fundamental da operação distributiva de direitos a pessoas e coletividades que, uma vez enredadas nas tramas do sistema prisional, encontram-se sujeitas a novas camadas de marginalização. Isso significa que é fundamental olhar e tornar visível a diversidade de sujeitos e demandas que compõem a população do sistema carcerário, para evitar a atualização e o aprofundamento das desigualdades de raça, classe e gênero por parte dos dispositivos estatais, bem como a distribuição injusta dos seus direitos.

Ao final da série ITTC Analisa, torna-se inquestionável a importância da produção, sofisticação e atualização constante dos mecanismos de pesquisa acerca do sistema prisional, no intuito de reconhecer o cenário prisional feminino em suas particularidades, demandas e perfis. No decorrer dos artigos, a equipe procurou reconhecer a importância do Infopen Mulheres enquanto ferramenta de luta e manutenção dos direitos das mulheres presas, que vem ganhando abrangência, elucidando especificidades, e criando acervos e séries históricas sobre o cenário prisional feminino de todo o país. Somando a isso o acúmulo de 21 anos de trabalho nesse cenário, o ITTC busca contribuir para a reflexão e o aprimoramento dos dados e das etapas de sua produção. É dessa forma que se consolida a incidência política do Instituto, no sentido de problematizar e reverter as práticas violentas engendradas pelo cárcere, junto dos modos desiguais de distribuição de direitos operados pelo Estado.

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ago 29, 2018 | Artigos, Noticias | 0 Comentários

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