Por Heloísa de Freitas, estagiária do Projeto Migrantes Egressas
Em comemoração ao Dia do Assistente Social, o Sefras (Serviço Franciscano de Solidariedade) organizou, em parceria com o CRAI (Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes), o evento “Serviço Social e Migração” no dia 15 de maio. O intuito era discutir os impactos da atuação do assistente social na migração a partir da perspectiva de defesa dos direitos humanos e negação da intolerância e da violência.
O evento teve início com uma fala do Frei Marx, que defende que “limites territoriais não são limites humanos.” O Frei apresentou o trabalho do Sefras e contextualizou sua atuação sobre o tema da migração. O Sefras é uma associação que tem como missão “promover ações e atitudes de solidariedade com os empobrecidos e excluídos, contribuindo para a transformação social, à luz do modo franciscano de viver e anunciar o Evangelho”. A instituição atua com a migração a partir de dois serviços: o Centro de Acolhida para Imigrantes e o CRAI. O trabalho do Sefras no âmbito da migração surgiu a partir das demandas de atendimento e acolhimento trazidas pela imigração haitiana para São Paulo no ano de 2014, quando foi criado o centro de acolhida (Sefras Migrante) em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS).
Em seguida, Rosangela Pezoti, supervisora técnica do Sefras, aprofundou mais a discussão sobre a defesa dos direitos humanos na perspectiva da migração no atual momento do Brasil, de um governo conservador, reacionário, autoritário e que busca a todo custo cercear direitos e garantias conquistados à duras penas. Nesse sentido, Rosangela chama atenção para a importância da assistência social na luta pela justiça social. Além disso, ela também fala sobre a migração como nova demanda social, que ainda é tema incipiente nos cursos de serviço social.
Depois da apresentação inicial do Sefras, houve o debate “A migração na perspectiva do assistente social”. O primeiro convidado foi Jorge Muñoz, assistente social argentino membro da Pastoral de Migraciones de Neuquén e coordenador da Rede de Líderes Migrantes. Sua exposição englobou a articulação entre migração humana, direitos humanos e serviço social que, de acordo com o que foi exposto, trata-se de três grandes questões inseparáveis.
Jorge Muñoz dedica a sua vida às migrações há mais de 40 anos a partir de uma perspectiva pastoral, acadêmica e política. Segundo ele, o sistema universal de direitos humanos deveria ser o paradigma que sustenta transversalmente toda a prática profissional do assistente social porque, dessa maneira, contribuiria para reparar a errônea associação dos direitos humanos com as ciências jurídicas e a delegação da garantia desses direitos apenas à advocacia: “Grave erro! Grave erro! Pensemos. Reflitamos. Os direitos humanos compreendem a totalidade de nossas vidas, no individual e no coletivo”.
Jorge destaca a importância do reconhecimento de outras profissões – universitárias e não universitárias – e de pessoas e grupos que fazem o trabalho social sem ter uma profissão terciária ou carreira universitária. “Se nós, com criatividade e com tremendo compromisso, e tendo os direitos humanos como marco geral e como paradigma de sustentação de nossa profissão, e abrindo os olhos ao outro, a esta alteridade que os migrantes nos trazem, creio que inteligentemente estamos fazendo confluir três questões que nos garantem e nos aproximam a este outro mundo possível. A este país que não merece Bolsonaro, e que merece muito mais.”
A segunda convidada a participar do debate foi Ester Vargem, membra do Instituto de Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB) e assessora técnica na Comissão Municipal de Direitos Humanos. Ester já produziu pesquisas sobre africanos em unidades prisionais, estratégias de ação para acolhimento e orientação para migrantes e estratégias de deslocamentos de africanos a partir de notícias de jornal. Em vista disso, a fala de Ester teve o intuito de contextualizar a imigração africana no Brasil, tema significativo de ser discutido por uma mulher negra, uma vez que a história do povo negro nesse país de herança escravista é alvo de diversos apagamentos.
A diáspora africana no Brasil teve origem no comércio de escravos (do século XVI ao
XIX). Este é um dado muitas vezes ignorado, em razão da discussão sobre migração no Brasil ter início com a vinda dos europeus e japoneses para a substituição da mão de obra escrava no período pós-abolição. Essa concepção é fruto do projeto político e ideológico de construção da nação brasileira, onde ocorre a eliminação do negro e do indígena. Portanto, com o final da escravidão, teorias eugenistas e argumentos baseados no Racismo Científico tomaram conta da construção da identidade nacional. Essas teorias apontavam para a miscigenação e o embranquecimento da população através das gerações como solução para o atraso e indolência da nação brasileira. Esse discurso da superioridade das raças legitimava a exploração daquelas tidas como subalternas.
Portanto vários fatores contribuíram para a estruturação do racismo no Brasil, começando pelo tempo em que a economia era baseada na escravização que desumanizou a população negra. Mesmo o modo como aconteceu a abolição da escravatura contribui imensamente para a situação marginalizada dos negros no Brasil, pois esta população, que não tinha nenhum tipo de direito ou resguardo social, foi simplesmente deixada à própria sorte no país. Desse modo, o negro é estruturalmente condenado a formar a parcela pobre e marginalizada da sociedade, que ocupa as periferias em uma condição de profunda vulnerabilidade social.
De acordo com Ester Vargem, até o ano de 1961 não se tem dados sobre a imigração africana para o Brasil. As primeiras ações de relevância e interesse pela África começam a aparecer no governo de Jânio Quadros, que promoveu atividades gradativas de intercâmbio estudantil em parceria com países africanos de língua portuguesa através dos programas PEC-G (Programa de Estudantes-Convênio de Graduação) e PEC-PG (Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação). Desde então, cada vez mais crescem as relações entre África e Brasil. Nos últimos anos, as parcerias tiveram um maior destaque no governo Lula.
Por fim, Ester retoma a questão dos refugiados africanos no Brasil e os mínimos sociais oferecidos pelas políticas públicas. Muitas vezes, esses migrantes são recebidos com agressões, violações de direitos e atitudes desumanas, acentuadas pela falta de informações dessas pessoas quanto ao acesso às medidas protetivas previstas no Estatuto do Refugiado. Crianças e adolescentes são tratados pelas autoridades oficiais da fronteira com desrespeito ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), sendo totalmente negligenciados pelo Estado brasileiro. Ademais, também é possível perceber o uso da legislação sobre migração de modo punitivo em detrimento do Estatuto do Refugiado, que tem base nos direitos humanos. A apresentação de Ester termina com uma fala de Achille Mbembe, filósofo camaronês: “Por mais que insistamos em criar fronteiras, erguer muros, diques e cercas, dividir, selecionar, classificar e hierarquizar, tentar excluir da humanidade aqueles e aquelas que desprezamos porque não se parecem conosco, importante insistir que existe um único mundo apenas, e que todos temos direito a ele. Somos todos cidadãos do mundo”.
A última apresentação do debate foi conduzida por Beatriz Pascoal, mulher angolana e mestre em Serviço Social pela PUC-SP, que fez um breve relato sobre sua pesquisa de mestrado intitulada Modo de vida de imigrantes africanos na cidade de São Paulo: a trajetória dos angolanos. O trabalho de Beatriz teve como metodologia a história oral, que permitiu chegar à constatação de que não importa a situação econômica ou social dos imigrantes africanos, os relatos sobre as trajetórias desses sujeitos no Brasil sempre envolvem o racismo e a violação dos direitos humanos, e que são condensados na seguinte afirmação que aparece diversas vezes nos relatos: “Sozinho sou sempre suspeito”. As causas da escolha do Brasil como destino tem relação com situações de risco e condições de emergência dessas pessoas em seu país de origem. Ao mencionar a acolhida brasileira, Beatriz explicita as relações entre migração e exclusão e a dificuldade de ser negro no Brasil: “o preconceito é o prato nosso de cada dia”. Nesse sentido, a imigração, supostamente livre, acarreta uma série de restrições.
O último momento do evento foi composto por três rodas de conversas: “Avanços e desafios na inserção de imigrantes no serviço de acolhimento”, “Imigrantes em ocupações” e “O serviço social e o trabalho com a rede no município de São Paulo”. A mesa acompanhada foi a primeira, conduzida pela Elaine, assistente social do Centro de Acolhida (Sefras Migrante). A exposição teve como foco o trabalho desenvolvido com a população migrante e os desafios colocados pela convivência entre alteridades e pelo sucateamento dos serviços da assistência social da cidade de São Paulo.
O Sefras Migrante é um serviço que oferece acolhimento 24 horas, alimentação, banho e atendimentos social, psicológico e jurídico para imigrantes, refugiados e solicitantes de refúgio. O centro de acolhida dispõe de 110 vagas fixas (não oferece vaga de pernoite), sendo 80 masculinas e 30 femininas, para pessoas de 0 a 60 anos. O atendimento prioriza migrantes recém-chegados no Brasil (um ano), e a média de permanência dos usuários no serviço é de seis meses a um ano.
O trabalho de acolhimento é pautado na busca pela autonomia dos usuários do serviço a partir do esforço em garantir direitos básicos e no acompanhamento do processo de saída da situação de rua. Elaine comenta sobre as dificuldades e percalços enfrentados pelos migrantes para a regularização migratória, obtenção de moradia e acesso ao mercado de trabalho formal, que acabam limitando a construção da autonomia dessas pessoas que muitas vezes são submetidas a trabalhos degradantes e moradias insalubres.
Diante dessa demanda, o Sefras Migrante também colabora para a inserção no mercado de trabalho, estudo da língua portuguesa e ensino escolar básico e profissionalizante através de projetos do próprio centro de acolhida e de parcerias com outros serviços, como o SASECOP (Serviço de Apoio Sócio Educativo de Capacitação e Orientação Profissional), Instituto Adus, Educafro, Associação Compassiva e PUC. Os desafios impostos ao migrante para o acesso ao mercado de trabalho são limitadores, uma vez que estes sujeitos são alvos de estigma, preconceito e xenofobia e sofrem com os perigos da urgência que muitas vezes os colocam em trabalhos degradantes e que apagam suas qualificações e experiências profissionais anteriores à migração. Além desse trabalho para a inserção no mercado de trabalho, o serviço também desenvolve atividades e oficinas socioeducativas, dentre as quais destacam-se as oficinas de vagonite e de flores de meia, sarau, rodas de conversa, o CineSefras e passeios culturais. Por fim, Elaine, enquanto assistente social, diz que considera errado tratar o migrante como uma pessoa em situação de rua, sendo que são categorias diferentes com demandas específicas: “o migrante não está em situação de rua, está em uma situação de necessidade de fortalecimento”.