O Coletivo Feminista “Non Gratxs” procura debater a situação da mulher em diversas perspectivas. De acordo com seu site, a ideia do coletivo surgiu por motivos de reação e apoio às vítimas atingidas por mais um desses episódios machistas que é normal depararmos diariamente, “na tentativa de desconstruir a ‘normalidade’ [com] que as pessoas encaram essas ações violentas, nos organizamos para produzirmos atividades, discussões, zines e outras atividades que visam o entendimento do feminismo como algo extremamente necessário”.
Como produto de uma de suas ações, o Coletivo produz um zine que já está em sua segunda edição. Nesta edição, a temática abordada em todos os textos são os tipos de encarceramentos que todas as mulheres sofrem. Confira abaixo a entrevista completa sobre o trabalho do ITTC com mulheres presas e o zine completo.
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1.Como é o trabalho do ITTC com mulheres estrangeiras presas?
O ITTC promove o acompanhamento jurídico e social das mulheres estrangeiras em conflito com a lei, o que consiste na consulta processual do caso jurídico; na manutenção do contato da estrangeira com sua família e com o respectivo consulado; no acompanhamento de eventuais casos de problemas de saúde; no encaminhamento em casos de gestantes e mulheres com filhos dentro das unidades prisionais, ou com filhos abrigados no Brasil; e no acompanhamento da situação de mulheres egressas do sistema penitenciário. Buscamos articular ações com as Defensorias Públicas e com outros órgãos estatais de forma a promover políticas públicas voltadas para mulheres estrangeiras em situação prisional baseadas nos Direitos Humanos.
2.Qual é o perfil dessas mulheres?
As mulheres estrangeiras em conflito com a lei são provenientes de mais de 60 países em todo o mundo, predominando atualmente mulheres da África do Sul, Bolívia, Angola e Tailândia, nesta ordem. De origem europeia, embora em menor número, também são frequentemente presas no estado de São Paulo espanholas e portuguesas. Tem crescido o número de mulheres muçulmanas, provenientes de diversas regiões, nos últimos anos. A garantia de seus direitos religiosos e como muçulmanas tem se constituído como um desafio em um país majoritariamente cristão.
A maioria das mulheres estrangeiras presa no Brasil, cerca de 75%, é mãe. Em mais de 95% dos casos, as mulheres estrangeiras são presas por causa do tráfico internacional de drogas. Essas mulheres são, em geral, primárias, de baixa renda, provedoras de suas famílias e apontam a necessidade econômica como principal causa de sua vinda ao Brasil.
3.Como são as cadeias femininas? Quais as diferenças de se trabalhar com mulheres e homens presos?
As prisões femininas variam em cada região do Brasil, ainda existindo lugares em que as mulheres e os homens não são separados devidamente durante a detenção policial. No estado de São Paulo, onde o ITTC atua de maneira direta, a superlotação das cadeias femininas é uma dura realidade. A Penitenciária Feminina da Capital (PFC), onde está presa a maioria das mulheres estrangeiras, funciona com 4 vezes mais presas do que a sua capacidade. A regra nas unidades prisionais do estado é o descumprimento dos direitos das mulheres, especialmente à saúde e à assistência social, normalmente providas de maneira precária. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já investigou a ocorrência de maior incidência de problemas de saúde mental e dependência a substâncias ilícitas entre as mulheres presas, em comparação com homens na mesma condição ou mulheres em liberdade.
As Regras da ONU para o Tratamento das Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras (Regras de Bangkok) estabelecem que os Estados devem oferecer apoio, tratamento e acesso à saúde a essas mulheres.
A maternidade gera também as mais frequentes demandas das mulheres em privação de liberdade, que como regra são tratadas pelo Estado brasileiro como desmerecedoras de seu direito ao poder e à convivência familiar. Frequentemente privadas do contato com seus filhos – seja em decorrência de seu abrigamento compulsório quando da prisão da mãe ou por conta das enormes distâncias entre as suas casas e os locais de cumprimento de pena determinados pelo Estado – as mulheres raramente são ouvidas a respeito do bem-estar da criança, ao longo de sua prisão. Em muitos casos, a ausência de informações e de acesso à justiça leva à perda da guarda da criança e a inúmeros casos de adoção, que entendemos serem completamente irregulares. A defesa do direito à maternidade também é uma prioridade das Regras de Bangkok da ONU.
4.Li alguns materiais do ITTC tratando a situação das mulheres estrangeiras como uma questão de gênero que vai além do envolvimento dessas mulheres com o tráfico de drogas internacional e que pode ser tratada como tráfico de pessoas. Você pode nos esclarecer um pouco mais esse assunto?
O ITTC vem promovendo a compreensão do governo, de juristas e da sociedade a respeito da condição de vulnerabilidade das mulheres que são cooptadas pelo tráfico (interno e internacional) de drogas. Entendemos que com frequência elas são coagidas ou enganadas para realizar o transporte de drogas. Os traficantes se aproveitam de uma condição pessoal de vulnerabilidade para envolvê-las nessa atividade.
Na condição de “mulas”, essas mulheres são condenadas pela Justiça brasileira como qualquer outro traficante, sem que se atente para o fato de que muitas delas sofreram graves coações e enganos, e podem ter sido forçadas a carregar drogas contra a sua vontade. Em todos esses últimos casos, o ITTC defende que se veja essa mulher juridicamente como vítima de tráfico de pessoas e não como traficante de drogas.
De toda forma, a condição como vítima do tráfico de pessoas precisa ser analisada caso a caso, com base no histórico de violência, na situação de vulnerabilidade, na condição econômica e em outros elementos relevantes. Inegavelmente não são todas as mulheres que são coagidas ou enganadas para carregar drogas. No entanto, o número de mulheres que, no nosso entender, são vítimas de esquemas de tráfico de pessoas é imenso e demanda uma revisão urgente da legislação e de sua aplicação.
5.Como podemos ajudar?
O ITTC ainda está bastante isolado na defesa dos direitos das mulheres privadas de sua liberdade. A sociedade não atenta para os problemas enfrentados pela mulher presa e dá pouca atenção para a proteção de seus direitos. No caso das mulheres presas por tráfico de drogas (brasileiras e estrangeiras), a sociedade marcada pelo discurso da guerra às drogas ainda não reconhece quando ela é, na verdade, vítima do tráfico de pessoas.
Um papel importante para pessoas e grupos engajados com problemáticas de gênero é divulgar informações sobre a condição e os direitos das mulheres presas. Promover o conhecimento da população sobre as vulnerabilidades de suas histórias pessoais é uma forma importante de buscar o convencimento. Precisamos fazer compreender que é a desigualdade de gênero que relega as mulheres a uma situação econômica e de reconhecimento institucional mais frágil, na qual lhe são privados inúmeros direitos e lhe são impostas diversas violências, tornando-as vítimas fáceis de esquemas de tráfico de drogas e pessoas, nos quais os altos comandos são sempre exercidos por homens em detrimento dos interesses dessas mulheres. Elas são usadas em redes criminosas das quais não participam e que promovem a sua exploração, até que sejam descartadas e acabem presas.