Mãe, esposa, vagabunda: O estigma das mulheres encarceradas apresentado no Seminário Tortura e Encarceramento em Massa

Por Emmanuel Ponte

O cárcere, por si só, é um lugar de permanente violação de direitos. A própria prisão é uma forma de tortura, de imposição de sofrimento. Porém, quando levantamos o debate sobre as mulheres no cárcere, percebemos que as violações se iniciam muito antes de receberem sua sentença.

No dia 13 de junho, o ITTC participou do Seminário Tortura e Encarceramento em Massa, realizado pela Pastoral Carcerária, e colaborou na organização da mesa “Encarceramento feminino e tortura”, mediada por nossa coordenadora de pesquisa Raquel da Cruz Lima. É do conteúdo apresentado nessa mesa que este texto trata.

Confira a cobertura do evento realizada pela Pastoral Carcerária

É certo que os homens presos também estão, na grande maioria, em uma situação de vulnerabilidade social anterior à prisão. Porém, no caso das mulheres, além de tal vulnerabilidade, muitas delas têm um histórico de violações perpetradas por seus pais, maridos e por uma sociedade cujo machismo latente as julga a partir daquilo que seria o “papel da mulher”.
20150613_153307Raquel iniciou o debate pontuando que, na história do Instituto, sempre buscamos por informações sobre as mulheres presas no Brasil e o que temos em retorno são grandes omissões. Em dados oficiais, como do Conselho Nacional de Justiça e do Departamento Penitenciário Nacional, os números sobre mulheres são quase inexistentes. Parece até que as diferenças de gênero não importam. “Não apenas essas, mas há um grupo enorme de pessoas no sistema carcerário cujas especificidades os dados oficiais omitem: negros, indígenas, quilombolas, transexuais”, relata Raquel.

Para compor a mesa, foram convidadas a pesquisadora e antropóloga Bruna Angotti; a defensora pública e coordenadora do Núcleo de Situação Carcerária da DPE-SP, Verônica Sionti; e a criminóloga, professora e autora do livro Criminologia feminista, Soraia da Rosa Mendes.

Leia também a cobertura realizada pela Revista Vaidapé

 “Quando falamos de prisão feminina jamais é para diferenciar os sexos, mas para pensar na prisão feminina com um olhar cuidadoso.”[1]

Para iniciar a reflexão, Bruna Angotti apresenta as diferenças entre sexo e gênero:

Sexo – Conceituação biológica. Cada sexo apresenta suas necessidades específicas. No caso do sexo feminino, por exemplo, existem a menstruação e a gravidez.

Gênero – Conceituação sociológica. Consiste no papel esperado das mulheres, como, por exemplo, o exercício da maternidade, a pureza, a discrição.

As prisões, além de não atenderem a necessidades específicas do sexo feminino, exercem controle e punem pelo descumprimento de um papel de gênero. A defensora pública Verônica conta que no atendimento realizado a presos provisórios, a primeira pergunta é “sofreu algum tipo de violência no momento da prisão?”. As respostas frequentemente são positivas e as violências sofridas podem ser verbais, físicas ou sexuais. No entanto, no caso da violência verbal, os presos homens relatam ser chamados de coisas como “lixo” ou “noia” – termos que se referem a algo que deva ser “jogado fora” ou a alguém sob efeito de drogas. No caso das mulheres, os termos são “vagabunda”, “puta”, “piranha” – que possuem muito mais uma conotação de julgamento moral em relação ao papel de “mulher boa e pura”, supostamente não exercido por elas.

“Se está presa, cometeu algum crime, com certeza é uma má mãe” é o pensamento recorrente de policiais, membros do Judiciário e agentes penitenciários. A defensora lembra, contudo, que a maioria dessas mulheres praticou o ato ilícito, normalmente ligado ao tráfico de drogas, justamente para sustentar suas famílias. Ela relata que já ouviu muito das diretorias dos presídios frases como “vocês precisam ensinar essas mulheres a serem mães”, “o que vai acontecer com esses bebês quando elas saírem da prisão?”. Há, inclusive, denúncias frequentes de agentes penitenciárias que ameaçam retirar os filhos das mulheres caso elas não se comportem – a relação com os filhos é utilizada para imposição de ordem, sofrimento e controle das mulheres.

Para Soraia Mendes, o papel da mulher nesse contexto social machista é localizado em um dos extremos: o da esposa ou da vagabunda. O moralismo na visão sobre a mulher pode ser ilustrado pela abordagem de Cesare Lombroso, jurista conhecido pelo livro O homem delinquente, em que categorizou homicidas e psicopatas por seus atributos físicos. A criminóloga conta que ele também fez a versão A mulher delinquente, pouco conhecida no Brasil. A diferença entre as duas obras, no entanto, está no tipo de julgamento realizado: para caracterizar o homem delinquente, ele olhou para o corpo, a fisiologia, o tamanho do cérebro etc.; já para as mulheres, a conduta criminosa foi relacionada a comportamentos “tipicamente” femininos: por serem essencialmente fofoqueiras, maliciosas, engenhosas e sedutoras, mulheres seriam capazes de cometer crimes friamente.

20150613_142411O julgamento moral das mulheres não é um fenômeno recente. Bruna Angotti, em sua dissertação de mestrado, realizou um levantamento da época em que os estabelecimentos prisionais só para mulheres começaram a ser criados, nos anos 1940 e 1950. Foi interessante notar que, enquanto as apreensões de homens e mulheres por alcoolismo e desordem eram em proporções semelhantes (em números absolutos era maior a de homens), as apreensões de mulheres por “escândalo” eram muito mais frequentes que as dos homens, tanto em proporção quanto em números absolutos. “Isso porque a mulher descumpria o que era esperado do ‘ser feminino’”, afirma a antropóloga.

Para Soraia Mendes, a “construção” da mulher criminosa é um processo histórico baseado em um julgamento moral sobre a inadequação de uma mulher ao que socialmente é exigido dela, como submissão, discrição e supressão de seus desejos sexuais. Ela conta que a repressão da mulher, historicamente, já foi fundamentada pelos discursos teológico, médico e jurídico. No passado, era normal que as mulheres fossem literalmente trancadas em seus quartos, às vezes sem janelas, por seus pais ou irmãos, ou algum homem que representasse o chefe da família. Outras, que se desviavam do comportamento exigido, seja porque queriam trabalhar, eram inférteis ou simplesmente gostavam de sair de casa, eram enviadas para conventos por suas famílias. Em um passado não muito distante, mulheres eram frequentemente diagnosticadas com “histeria” e “escândalo” e assim enviadas para manicômios. Hoje, muitos desses discursos já foram reelaborados, mas as mulheres que se arriscam em atos ilícitos para cuidar de suas famílias são trancafiadas em prisões, com penas altíssimas e sujeitas a um discurso moralizante vindo do Judiciário e da sociedade: “Não pensou no filho na hora de cometer o crime?”.

“Ele tanto fez que conseguiu me trazer para cá.”[2]

O transporte de substâncias ilícitas para dentro do presídio onde seu companheiro se encontra não deve ser interpretado ingenuamente como prova do “verdadeiro amor de uma mulher”, mas sim como o indicativo de que as relações românticas também são construídas socialmente a partir de dinâmicas de poder, que colocam muitas vezes as mulheres em situação de violência e coação moral.

Para ilustrar tal situação, Soraia narra a história de uma das mulheres que entrevistou em suas pesquisas. Era uma jovem que sofria violência doméstica desde a infância, por parte do pai e do irmão, e se casou aos 14 anos com um homem que era envolvido com tráfico de drogas e também a agredia. Tiveram uma filha e, logo, ele começou a agredi-la também. Em determinado momento ele foi preso e ela relatou ter sentido um alívio momentâneo, mas depois percebeu que seu marido havia mandado comparsas vigiá-la. Pedia frequentemente que ela fosse visitá-lo, levando sempre algo de seu interesse – até que em um momento ela foi pega com maconha entrando no presídio.

“Um olhar distante e frio não nos permite enxergar a tortura. Nem física, nem psicológica, nem cotidiana.”[3]

Uma pesquisa realizada pela Defensoria revelou que as mulheres que são presas, na grande maioria dos casos, são as únicas ou as principais provedoras de seus lares. Muitas delas possuem jornada dupla: um emprego, normalmente informal, e um “bico” no comércio de pequenas quantidades de drogas. As desigualdades de gênero do mercado de trabalho são acentuadas no mercado ilegal. As mulheres geralmente ganham pouco, estão em posições subalternas e de fácil substituição.

A mesma pesquisa revelou que a maioria dos filhos de mulheres presas ficou sob a guarda das avós maternas, ao passo que uma quantidade muito significativa de mulheres – corresponde ao segundo maior contingente para a pergunta sobre a situação da guarda depois da prisão – afirmou que não tinha com quem deixar seus filhos e, portanto, eles oficialmente não estavam com ninguém. O ITTC já realizou um levantamento com as presas provisórias em São Paulo (Tecer Justiça) que chegou a conclusão semelhante. No atendimento às mulheres estrangeiras, que o Instituto realiza há 14 anos, também se constata a mesma realidade.

Hoje, a maioria expressiva das prisões de mulheres é causada pelo trabalho em atividades ligadas ao comércio de drogas. Isso, segundo Angotti, em razão da política de guerra às drogas e encarceramento em massa, que não é restrita ao Brasil. O número de mulheres encarceradas aumentou no mundo todo – em dez anos, aumentou 246% no Brasil. Aqui, 65% do total das mulheres presas são por tráfico. Soraia afirmou que, no Distrito Federal, esse número chega a quase 80%.

Na prisão, as garantias do regime de contratação da CLT são inexistentes. Por isso, a necessidade de afastamento do trabalho por estar em gravidez avançada ou em período de amamentação significa a ausência de renda, tornando mais difícil a subsistência de seu recém-nascido, que necessita de produtos específicos não disponibilizados pela penitenciária.

Também em relação à gravidez, Bruna mencionou sua pesquisa “Dar à luz na sombra”, encomendada pelo Ministério da Justiça. Nela, percebeu-se que o uso de algemas no parto é rotineiro em muitos lugares do país. Em São Paulo, as melhorias que se verificam no parto podem ser atribuídas à luta histórica de organizações como Pastoral Carcerária, ITTC, Defensoria Pública do Estado e outros movimentos sociais que lutaram para a erradicação da prática.

20150613_153234A pesquisa também discutiu o problema da chamada hipermaternidade. As mulheres, ao darem à luz, ficam em um ambiente separado das demais detentas e exercem o papel de mãe 24 horas por dia. “Não há o exercício livre da maternidade”, comentou a antropóloga. A mãe deixa o convívio com outras pessoas e tem que ser somente mãe. Nas prisões, o período mínimo de permanência de recém-nascidos com suas mães é de seis meses, mas esse acaba tornando-se o máximo concedido. Após esse prazo de maternidade intensa, o bebê é retirado e a mãe se vê subitamente sem ele em um espaço em que está rodeada por outros bebês até que seja mandada de volta ao antigo pavilhão. A defensora Verônica Sionti acrescenta que esse tende a ser um período profundamente traumático, não apenas psicologicamente, mas também fisicamente, já que a mulher que até então amamentava regularmente passa a não extrair o leite produzido – o que causa febres e dores no corpo.

Outro direito frequentemente violado em prisões femininas é a visita íntima. Angotti constatou que a visita está sujeita à arbitrariedade da gestão prisional – algumas diretorias permitem a visita apenas quando a mulher é casada, outras permitem também a solteiras e algumas chegam a negar esse direito completamente.

Para Verônica, o encarceramento das mulheres longe de suas famílias é um dos maiores causadores de rompimento de vínculos familiares. A perda do vínculo reforça as vulnerabilidades nas quais a família da presa se encontra. Sem a mãe exercendo algum tipo de trabalho remunerado, a família perde renda e muitas vezes não consegue se deslocar até o local do presídio para realizar visitas. A defensora, que já foi estagiária do Projeto Estrangeiras do ITTC e hoje compõe a diretoria do Instituto, relata uma história marcante na sua experiência de atendimento às presas estrangeiras: uma mulher tailandesa que teve seu filho na prisão, após o prazo mínimo de amamentação, entregou seu bebê para um abrigo. Quatro anos se passaram até que ela conseguisse a liberdade. Quando o encontrou novamente ele já falava, porém apenas o português, um idioma que ela mesma não falava, já que na prisão se comunicavam em inglês. “É um caso raro, porém muito emblemático para ilustrar que se pode produzir um abismo cultural entre mãe e filho nesse período de distância”, comenta Sionti.

Verônica lembra ainda que a revista vexatória também constitui um grande fator de rompimento de vínculos, tanto pela recusa dos familiares de visitarem em razão da prática, quanto pela prisão de mulheres durante a revista, por levarem objetos ou substâncias ilícitas para seus companheiros que estavam presos – no entanto, no universo geral das visitações, é extremamente raro que algum objeto ilícito seja encontrado durante as revistas; dados da Rede Justiça Criminal indica que isso ocorre em menos de 0,03% dos casos. A revista vexatória consiste, segundo a defensora, em uma forma de intimidação e tortura institucionalizada.

A solução mais apropriada apontada para todos esses entraves seria uma política de desencarceramento feminino. A Defensoria tem conseguido perante o Supremo Tribunal Federal que gestantes e mulheres com filhos pequenos fiquem em regime de prisão domiciliar, sem serem obrigadas a abandonar seus filhos.

[1] Frase de Bruna Angotti.

[2] Depoimento de uma mulher presa, fonte de pesquisa de Soraia Mendes.

[3] Frase de Verônica Sionti.

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Foto em destaque: Érika Motoda/Revista Vaidapé

Fotos no texto: ITTC

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jul 15, 2015 | Sem categoria | 0 Comentários

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