O delicado voo do colibri

por Ricardo Urquizas Campello
 

O que o plebiscito do Uruguai tem a nos dizer sobre o debate da diminuição ou não da maioridade penal

Na semana passada, enquanto os eleitores de Dilma Rousseff comemoravam a reeleição da candidata à presidência da República no Brasil, outro grito emocionado de alívio soava na sede da Comissión Nacional No a la Baja, em Montevidéu, no Uruguai. Após a realização de um plebiscito para decidir sobre a diminuição ou não da maioridade penal de 18 para 16 anos no país, mais de 53% da população uruguaia se posicionou contra a redução.

A proposta de reforma seria aprovada caso a campanha pelo “Sim à redução” obtivesse mais de 50% dos votos. Ela alteraria o artigo 43 da Constituição do Uruguai, prevendo que jovens a partir dos 16 anos fossem julgados como adultos caso cometessem crimes de furto, roubo, extorsão, lesões graves ou gravíssimas, sequestro, estupro, homicídio ou homicídio qualificado. Além disso, propunha que a ficha pregressa de jovens não fosse desconsiderada e passasse a ser levada em conta nos processos penais a que fossem submetidos após completarem 16 anos.

A comissão contrária à medida, composta majoritariamente por jovens apartidários, chamava atenção para a constatação de que o endurecimento das políticas de penalização de jovens não repercute na contenção da violência. Fabiana Goyeneche, Zelmar Lucas e Frederico Barreto foram algumas das vozes do movimento uruguaio “No a la baja”, que levava como símbolo o voo livre do colibri. Já a campanha pela redução foi liderada pelo então candidato à presidência do Partido Colorado, Pedro Bordaberry, filho do ditador uruguaio Juan María Bordaberry, condenado em 2006 por tortura, sequestro, desaparecimento e assassinato de pessoas durante o seu regime.

A vitória dos uruguaios contrários à intensificação das penalizações contra jovens deve ser celebrada por todos aqueles que não acreditam no cárcere como suposta forma de “reeducação” ou solução de conflitos. Entretanto, ela não significa em absoluto a interrupção do avanço de forças políticas punitivas na América Latina. Em terras brasileiras, a formação de um Congresso composto em grande medida por deputados e senadores representantes da chamada bancada da bala, com propostas de endurecimento de penas que incluem a redução da maioridade penal por aqui, indica que a luta persiste e se deve tomar fôlego para os próximos anos. Atingimos em 2014 a marca de 711 mil pessoas presas. Em 2012, os dados do Departamento Penitenciário Nacional já indicavam que mais da metade da população prisional do Brasil era composta por jovens entre 18 e 29 anos. É a nossa juventude que se encontra atrás das grades.

Ademais, considerando a atual política de atendimento socioeducativo a adolescentes em conflito com a lei, pode-se afirmar que a maioridade penal no Brasil já foi reduzida para 12 anos, idade em que meninas e meninos que praticam atos infracionais são levados às instituições de internação, que nada mais são do que presídios para jovens. As chamadas medidas socioeducativas não passam de eufemismos para a pena propriamente dita. Procedimentos processuais tais como a prisão preventiva de adultos são reproduzidos pelo sistema de atendimento socioeducativo por meio das Unidades de Internação Provisória (UIPs). Denúncias de torturas, maus-tratos, espancamentos e isolamentos nas chamadas “celas de seguro” são frequentes nas unidades de internação.

Ao trancar jovens em instituições espelhadas no modelo prisional, a justiça se apropria não somente de seus corpos, mas também de seus sonhos e perspectivas de transformação da própria realidade social. Considerando que quem habita essas prisões juvenis são infalivelmente os adolescentes pobres e de bairros periféricos, o dito sistema de atendimento socioeducativo inicia o crivo criminalizador da miséria, consolidado pelo sistema penal adulto. Nesse sentido, fixar a idade penal em faixas etárias cada vez menores ratifica a já conhecida seletividade da justiça criminal, ampliando seu alcance para as gerações que se esforçam em florescer. Que o êxito uruguaio fortaleça o combate às prisões para jovens no Brasil e em toda a América Latina. E que voem os colibris!

  • Ricardo Urquizas Campello é mestre e bacharel em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisador do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e autor do livro Política, direitos e novos controles punitivos: o monitoramento eletrônico de presos.

 Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

Fonte: Estadão

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nov 10, 2014 | Sem categoria | 0 Comentários

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