O labirinto do sistema prisional e os caminhos da CPI

Por Mariana Lins de Carli Silva, publicado na Revista Fórum e na Caros Amigos

O sistema carcerário brasileiro é insustentável. A superlotação e as condições degradantes das prisões têm gerado certo consenso de que algo precisa ser feito em relação ao cárcere e ao sistema penal como um todo. Mesmo após inúmeros diagnósticos que cristalizam a ineficácia do sistema penal para o que se propõe oficialmente, seja prevenir novos crimes e/ou ressocializar a pessoa, setores conservadores insistem em caminhos que nos mantêm onde estamos – no labirinto do sistema penal.

Entre as paredes estruturantes desse labirinto – polícia, Judiciário, Legislativo, mídia e cárcere –, percursos que levam à manutenção dessa dinâmica de violação de direitos e gestão da pobreza têm sido priorizados pela política criminal. É nesse contexto que as deliberações e encaminhamentos da recente CPI do Sistema Carcerário se inserem.

A primeira Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário, no âmbito da Câmara dos Deputados, foi instaurada em 2008. Na época, o deputado federal presidente da CPI, Domingos Dutra (PT-MA), concluiu que o sistema prisional se sustenta “na base da tortura física, moral e psicológica”.

Após 7 anos, sem qualquer mudança dos rumos punitivistas para a garantia de direitos, foi instaurada uma nova CPI sobre o tema, cujo objetivo era investigar “o Sistema Carcerário Brasileiro, com ênfase nas crescentes e constantes rebeliões de presos, a superlotação dos presídios, péssimas condições físicas das instalações e os altos custos financeiros de manutenção destes estabelecimentos”. Sob a presidência do deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), integrante da bancada da bala, as conclusões e os encaminhamentos dos trabalhos formam um trajeto tautológico em meio às brutalidades do sistema penal. Vejamos algumas das principais.

A deliberação pela transferência de recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para os estados bem como incentivos para municípios em que sejam construídos estabelecimentos prisionais acompanham a direção de que a solução para o encarceramento em massa é a construção de mais vagas, e não o desenvolvimento de políticas desencarceradoras. Ora, o aumento de vagas pressupõe uma expansão do aprisionamento, o que é contraproducente com o fim da superlotação. Aliás, o ritmo de crescimento das vagas tem sido acelerado, mas o problema persiste.

Nesse mesmo sentido, é reivindicada a privatização de presídios como solução mágica para sair desse labirinto. Com a promessa de uma gestão eficiente, inclusive supostamente garantindo melhores condições aos presos, as unidades regidas pelas parcerias público-privadas ou em cogestão já mostraram ao que realmente vieram de fato: lucrar a partir da ampliação do encarceramento. Quanto mais presos, mais verbas repassadas às empresas. Dentro da dinâmica lucrativa em que o status de commodity é atribuído à pessoa presa, cortar verbas destinadas aos direitos dos presos e aumentar lucro com mais presos é a diretriz.

Há algumas deliberações que demandam muita atenção quanto a seu modo de concretização, pois o que se tem percebido é a crescente apropriação pelo sistema penal de pautas originalmente progressistas, quando idealizadas e formuladas, mas que ao serem implantadas têm suas finalidades distorcidas. É o caso das audiências de custódia e das alternativas penais. A luta para que a pessoa investigada seja apresentada a um(a) juiz(a) em até 24 horas após a prisão tem como principais pontos de partida apurar casos de tortura e abusos cometidos por policiais, bem como de qualificar a defesa criminal nessa fase, almejando maior incidência da liberdade provisória em relação aos(às) investigados(as). Entretanto, tem sido notado que o potencial desencarcerador e garantidor da dignidade humana do(a) investigado(a) das audiências de custódia no curso de sua institucionalização não tem tido a expressividade que todos esperavam. A impermeabilidade em relação aos relatos de tortura, as ameaças, os flagrantes forjados continuam frequentes mesmo com a apresentação da pessoa ao juízo. Quanto às alternativas penais, a ambiguidade de sua finalidade está em disputa. De um lado, parcela progressista propõe o uso de tais medidas em casos já captados pelo sistema penal, com objetivo de possibilitar redução do encarceramento. De outro, são reivindicadas enquanto complementos à prisão, que abarcam delitos de menor potencial ofensivo e, portanto, proveem uma expansão do controle penal.

Feito esse breve panorama de algumas das principais deliberações da CPI do Sistema Carcerário, percebe-se que as propostas elencadas compõem uma rede que se entrecruza de modo a sempre nos levar ao centro desse labirinto: continua-se acreditando no sistema penal como a única ou a melhor solução para conflitos sociais.

A crítica a essas medidas não é novidade. Movimentos sociais, ONGs, as Defensorias Públicas e acadêmicos realmente comprometidos com pautas progressistas alertam para a expansão das mazelas do encarceramento em massa e do controle penal há tempos. Assim, mais do que nunca, resta fortalecer propostas desencarceradoras, que, de fato, possam trilhar novos horizontes.

Em busca de mapear alguns passos fundamentais nessa longa e necessária caminhada, pode-se ter como ponto de partida a agenda pelo desencarceramento elaborada pela Pastoral Carcerária e organizações parceiras. Segundo o documento: “É necessário, urgentemente, fechar as comportas do sistema penal e estancar as ‘veias abertas’ do sistema prisional brasileiro com a adoção de medidas efetivas de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de mitigação de danos enquanto houver prisões”.

Na contramão de investimentos e incentivos para a construção de mais unidades prisionais, propõe-se a suspensão de qualquer verba voltada à construção de novas unidades prisionais. Entende-se que a busca por mais vagas para sanar a superlotação serve, em verdade, de fomento às prisões. Nesse sentido, a vedação à privatização do sistema prisional se impõe como medida para impedir a obtenção de lucro com a restrição da liberdade.

A proposta para o problema da superlotação é a redução do contingente prisional. Para isso, é possível se valer de alguns mecanismos legais já existentes. A concretização do mandamento constitucional da liberdade provisória como regra e o cumprimento de todas as garantias previstas na Lei de Execução Penal seriam um bom começo. Nessa mesma trilha, soma-se o indulto, perdão da pena concedido a perfis determinados por decreto do governo federal, enquanto mais um importante propulsor desse objetivo. O questionamento, a pressão e o acompanhamento da sociedade civil sobre os critérios a serem adotados acerca dos perfis mais significativamente encarcerados são fundamentais.

Ainda sob a perspectiva da redução do encarceramento, é imprescindível a luta pelo antiproibicionismo do comércio e do uso de entorpecentes. A política de segurança pública baseada na guerra às drogas se materializa na violência policial e encarceramento daqueles considerados inimigos – pobres, pretos e periféricos. A suposta proteção da “saúde pública” e do(a) próprio(a) usuário(a) por meio de uma política proibicionista aumenta a estigmatização da pessoa, dificultando a busca por tratamento e, consequentemente, amplia a situação de vulnerabilidade da pessoa usuária. Necessário ressaltar que a política de combate às drogas é ainda pior para as mulheres, que geralmente ocupam postos de pequena distribuição, como “aviãozinho”, e ficam mais sujeitas à seletiva abordagem policial. Não por acaso, o tráfico de drogas é o motivo de encarceramento de 64% das mulheres no Brasil.

Longe de esgotar as pautas que pretendem desestabilizar a rota do encarceramento em massa, o panorama desenhado brevemente busca demonstrar que sim, há alternativas concretas e urgentes que permitem construir novos horizontes democráticos e populares. No âmbito da contenção de danos, diversas medidas podem ser prontamente implementadas, como a proibição da revista vexatória, a efetivação de mecanismos já previstos em lei para o desencarceramento e coibição de tortura nas prisões e o fornecimento de itens básicos de vestimenta e higiene, que são elementares para a garantia de dignidade às pessoas presas. Ainda, muito pouco se fala sobre alternativas ao sistema de justiça criminal, como a prática da Justiça Restaurativa. A insistência em soluções que nos mantêm onde estamos, quando não agravam o cenário, não nos permite avançar rumo a saídas desse labirinto penal. Além de redirecionar nossa trilha, precisamos apertar o passo, pois a caminhada é longa.

Compartilhe

out 28, 2015 | Mídia | 0 Comentários

Posts relacionados

ITTC - Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.