Pacote anticrime e progressão de regime

Em fevereiro de 2019, o atual Ministro da Justiça e ex-juiz federal, Sérgio Moro, apresentou a governadores de diversos estados e depois ao Congresso o documento denominado como “Pacote Anticrime”. O texto prevê alterações legislativas em 14 leis e, dentre seus diversos objetivos, mudanças que, se aprovadas, modificarão algumas regras relativas ao cumprimento da pena privativa de liberdade. Especificamente sobre tal temática, foram apresentadas alterações no Código Penal, na Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) e na Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/13).

O ITTC, que desenvolve há mais de 20 anos um trabalho com mulheres migrantes em conflito com a lei, além de diversas pesquisas sobre mulheres e encarceramento, entende o impacto que as medidas podem ter sobre a vida de muitas pessoas já inseridas em um contexto de vulnerabilidade social. As mudanças afetam não apenas as centenas de milhares de pessoas encarceradas, mas também suas famílias e comunidades que, fora das prisões, também arcam com os obstáculos criados pela privação de liberdade. Partindo da importância do tema, apresentaremos, de maneira breve, algumas reflexões sobre as alterações apresentadas.

Crimes contra a administração pública

Para o Código Penal, uma das propostas da primeira versão do Pacote visava alterar os artigos sobre peculato (312), corrupção ativa (317) e corrupção passiva (318). O cumprimento da pena para os condenados por esses três crimes se iniciaria, obrigatoriamente, no regime fechado, salvo se envolvesse pequeno valor ou se todas as circunstâncias do art. 59 fossem favoráveis. A pena deveria ser iniciada no regime fechado também para os condenados pelos crimes de roubo agravado com o emprego de arma de fogo ou artefato explosivo, e roubo qualificado pela ocorrência de lesão corporal grave, a não ser que todas as condições do art. 59 fossem favoráveis.

Essas alterações não foram mantidas na segunda versão do documento, na qual a única mudança relativa ao tema é uma alteração no já mencionado art. 59, que permitiria ao juiz fixar um tempo mínimo de regime inicial fechado ou semiaberto antes da possibilidade de progressão de regime.

Crimes hediondos e organizações criminosas

Com relação às modificações na Lei de Crimes Hediondos, não houve alteração entre a primeira e a segunda versão do Pacote. A proposta é acrescentar três parágrafos ao art. 2º, que versa sobre “os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo”. As inclusões estabelecem que:

  1. Nos casos que envolverem morte, a possibilidade de progressão se dá a partir do cumprimento de 3/5 da pena (e não mais 2/5).
  2.  Em todos os casos dos crimes previstos no artigo, a progressão de regime estaria “subordinada ao mérito do condenado e à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir”.
  3. Para os presos (provisórios ou definitivos) por crimes hediondos, tortura ou terrorismo (excluindo-se, portanto, os acusados por tráfico de drogas), ficariam proibidas as saídas temporárias, com exceção daquelas em razão de falecimento de familiar ou tratamento médico, em regime fechado e semiaberto (neste último, há exceção também para trabalho ou curso).

Na exposição de motivos do projeto de lei enviado ao Congresso (PL 882/2019), menciona-se a exclusão proposital do crime de tráfico de drogas, pelo fato de envolver “situações de diferentes graus de gravidade”, sendo que o “endurecimento não deve ser generalizado”. Evidente, portanto, que o governo está ciente do número de pessoas presas por tráfico que droga que portavam baixas quantidades de substâncias entorpecentes, contudo fez uma escolha política de tratar deste problema a partir do endurecimento de certas medidas, ou seja, encarcerando mais, ao invés de, por exemplo, investir em medidas alternativas desencarceradoras.

Por fim, também as alterações propostas sobre o assunto na Lei de Organizações Criminosas foram mantidas e enviadas ao Congresso. Uma delas determina que, para as lideranças de organizações criminosas que tenham armas à disposição, o cumprimento da pena deve ser obrigatoriamente iniciado em estabelecimentos prisionais de segurança máxima. Além disso, busca-se incluir na lei uma determinação de que os condenados por integrarem organizações criminosas ou por crimes praticados através de associação criminosa não possam progredir de regime ou obter livramento condicional se houver “elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo”.

“Todas as propostas apresentadas demonstram a centralidade que a pena de prisão tem na visão desse novo governo”

Todas as modificações propostas têm como objetivo fazer com que as pessoas acusadas de certos tipos de crime permaneçam em estabelecimentos prisionais pelo maior tempo possível. Essa seria a maneira, de acordo com a exposição de motivos do PL e para defensores do Pacote, de diminuir a criminalidade. Contudo essa visão ignora o rápido e vertiginoso crescimento das taxas de aprisionamento no Brasil – 707% entre 1990 e 2016 – e os diversos relatos de violações de direitos humanos básicos nesses estabelecimentos, decorrentes inclusive da superlotação.

Algumas das propostas vão também de encontro com o princípio constitucional da individualização da pena. É o caso, por exemplo, daquelas que estabelecem a obrigatoriedade do início do cumprimento da pena em regime fechado e das que proíbem as saídas temporárias em regime fechado, semiaberto e para presos provisórios.

A individualização da pena serve como forma de garantir que a pena seja imposta por conta do que efetivamente foi cometido e não por características da pessoa que cometeu a infração ou por um interesse maior do Estado de “dar um exemplo” para o restante das pessoas. O princípio também é importante para garantir que as penas não ultrapassem o sujeito condenado ou condenada, ponto frisado na carta de lançamento da campanha “Pacote Anticrime: uma solução fake”, da qual o ITTC participa com outras entidades.

Ainda, mesmo nos casos em que a possibilidade de progressão de pena é mantida, foram incluídas novas condições, que passam longe de ser objetivas e mensuráveis. Ao contrário, as exigências dizem respeito ao “mérito do condenado” e suas “condições pessoais”, hipóteses abstratas e subjetivas, uma vez que não há parâmetros para medir o mérito ou as condições pessoais de qualquer sujeito. Sendo assim, é muito provável que essas regras sejam aplicadas de maneira discricionária, segundo entendimento pouco uniformizado dos julgadores, o que inclusive dificulta a defesa das pessoas condenadas, que terão de produzir provas muito complexas sobre “mérito” e “condições pessoais” favoráveis.

Seguindo esse mesmo raciocínio, a mudança a ser realizada no art. 59 é problemática, visto que permite aos magistrados e magistradas estabelecerem tempos mínimos de permanência nos regimes fechados ou semiaberto sem, contudo, estabelecer qualquer tipo de parâmetro para a tomada de tais decisões. Algumas das condições trazidas no artigo são extremamente subjetivas, como a “personalidade do agente”. Tampouco há um limite para tal “tempo mínimo” estabelecido. Sendo assim, será muito difícil padronizar a aplicação desse novo dispositivo, que poderá fazer com que diversas pessoas permaneçam em estabelecimentos prisionais por um longo período.

Todas as propostas apresentadas acima, bem como suas justificativas oficiais, demonstram a centralidade que a pena de prisão tem na visão desse novo governo. No artigo O Direito Penal é Capaz de Conter a Violência?, Marta Machado e Maíra Machado aprofundam a discussão sobre este tipo de discurso e atuação, que vem ganhando cada vez mais espaço:

O uso do termo “impunidade”, nessa linha, é perigoso, porque nos leva a dois tipos de redução: fecha a atuação do sistema de justiça na responsabilização individual com atribuição de pena e faz coincidir a ideia de pena com privação de liberdade por longos períodos. Esses diagnósticos partem de uma percepção de que algo está faltando para que possamos melhor lidar com um determinado problema social. E esse algo é sempre a prisão. Ainda que muitas vezes se esteja diante de problemas sérios na atuação do sistema de justiça, o discurso da impunidade nunca coloca em causa a resposta prisional e fecha o espaço para pensarmos sobre a melhor forma de resolver o problema. (p. 345)

Do ponto de vista do Instituto, persistir com a estratégia de priorização da pena privativa de liberdade, como proposto pelo “Pacote Anticrime”, aprofundará os problemas atuais do sistema carcerário brasileiro, corroborando para a perpetuação das diversas violências presentes nesses espaços.  

Especificamente para mulheres, a privação de liberdade tem aspectos muito perversos de quebra dos vínculos comunitários e familiares, como já foi apontado por pesquisas realizadas pelo ITTC. Persistir na estratégia encarceradora vai de encontro com diversas normativas nacionais e internacionais, como o Marco Legal da Primeira Infância e as Regras de Bangkok, que entendem as especificidades de gênero e buscam alternativas para proteção dos direitos das mulheres.

Por tudo isso, o ITTC vê com muita preocupação as propostas de modificação das regras de progressão de regime e posiciona-se contra qualquer tipo de retrocesso que leve ao aumento das taxas de encarceramento no Brasil.

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jun 4, 2019 | Artigos, Noticias | 0 Comentários

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