Lucia Sestokas*
No mês de junho foi noticiada uma chocante situação de abrigamento compulsório de crianças filhas de usuárias de drogas em Minas Gerais, logo após o parto. Essa violência inegavelmente fere direitos das mulheres e das crianças. Trata-se de uma medida que generaliza a resposta estatal e desconsidera particularidades relevantes para se proceder a uma avaliação sobre a solução que mais corresponda ao melhor interesse da criança. Entre os principais problemas da medida estão a falta de diferenciação entre uso problemático e não problemático de drogas, o desrespeito aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher e a ausência de políticas de saúde e de assistência social adequadas.
O Ministério Público de Belo Horizonte expediu em 16 de junho de 2014 uma recomendação que solicita às maternidades públicas da capital mineira que sejam encaminhados à Vara da Infância e Juventude os casos de mães que declaram já terem feito uso de substâncias entorpecentes. Em outro documento, recomenda-se que as Unidades Básicas de Saúde comuniquem à Vara casos de gestantes usuárias de drogas. Ainda que as recomendações não tenham caráter obrigatório, elas têm funcionado como ferramenta para o encaminhamento direto ao abrigamento de filhas e filhos recém-nascidos de mães que declararam já terem feito uso de drogas.
Em notícia da organização Oficina de Imagens, Matilde Fazendeiro Patente, promotora de Justiça da Infância e Juventude Civil de Belo Horizonte, afirma que no período em que a criança estiver acolhida, o juiz irá encaminhar a mãe para tratamento e, constatada a impossibilidade de a mãe permanecer com a guarda do filho, o abrigo avaliará se familiares têm possibilidade de receber a criança. No entanto, Vânia Sobreira, membro da coordenação do Fórum de Abrigos, afirma que “não é feito nenhum levantamento da família extensa”.
Em junho de 2014 o Conselho Municipal de Saúde emitiu em parecer que a medida provocou um aumento de encaminhamentos de recém-nascidos para abrigos. Entre junho e setembro de 2014, 64 bebês foram abrigados, contra 26 no mesmo período de 2013. Cerca de 80% das crianças abrigadas são filhas de usuárias de drogas. O Conselho apontou ainda o perigo do afastamento das mulheres gestantes do acompanhamento pré-natal por medo de serem denunciadas.
Em janeiro deste ano, uma reunião na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais debateu as denúncias. Em uma segunda audiência em maio, as Comissões de Prevenção e Combate ao Uso de Crack e Outras Drogas, de Segurança Pública e Extraordinária das Mulheres condenaram a recomendação como contrária aos direitos fundamentais da mulher à maternidade e aos direitos do bebê ao convívio com a mãe ou a família.
Inicialmente, cabe aqui pontuar uma primeira diferenciação conceitual: ao declarar o uso de substâncias psicoativas, a pessoa se afirma como usuária, mas não necessariamente dependente. Nesse sentido, as mães que declaram já terem feito uso de certas substâncias não necessariamente se enquadram na determinação do Artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), segundo o qual “toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”.
As recomendações violam o direito à convivência familiar previsto no ECA, no momento em que encaminham bebês recém-nascidos para longe de suas mães sem uma justificativa ou um procedimento de avaliação prévio, determinado judicialmente.
Internacionalmente, a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, de 1989, tem em seu Artigo 9º que “os Estados Partes deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade dos mesmos”, a não ser em casos em que “a criança sofre maus-tratos ou descuido por parte de seus pais”. Mesmo em caso de adoção, a participação e manifestação da opinião dos pais deve ser assegurada.
Ainda que a legislação brasileira seja pautada pelo art. 28 da Lei de Drogas, que despenaliza a pessoa usuária, medidas como as recomendações do MP de Minas Gerais operam no sentido de criminalizá-la, contrariando o que é defendido pelo Ministério da Saúde.
O ECA prevê a oferta de assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal, o que também é definido pela Convenção da ONU (Artigo 18). Cabe, portanto, ao Estado garantir o acesso a tratamento digno e condizente com os direitos humanos às pessoas usuárias que desejarem acompanhamento psicossocial. Não é admissível que a pessoa usuária seja penalizada por uma falta do Estado.
A decisão de recomendar o abrigamento de filhas e filhos de usuárias aponta para uma concepção moralista sobre seu papel como mulheres e mães, já que por serem usuárias são consideradas inaptas ao cuidado de seus filhos e lhes é tirado um direito legalmente protegido no caso de outras mulheres. Elas são, dessa forma, punidas na esfera civil por um fato que decorre do exercício de sua liberdade individual.
O Conselho Regional de Serviço Social de Minas Gerais opina em Manifesto que não é possível contrapor ou hierarquizar direitos das mulheres e crianças. O direito dos pais de manter a criança só deve ser questionado após ser provada sua incapacidade de zelar pelo melhor interesse da criança. Fica evidente que o fato de já ter feito uso de substâncias psicoativas não quer dizer que a pessoa seja usuária frequente e muito menos dependente.
Ainda, dado que o encaminhamento de casos de usuárias é feito nos hospitais públicos, fica evidente o recorte de classe embutido nas recomendações, funcionando na prática como uma forma de criminalização da pobreza.
Para fins comparativos, sobre situações de denúncias de casos de aborto, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo emitiu parecer explicitando que “diante de um abortamento (…), não pode o médico comunicar o fato à autoridade policial ou mesmo judicial, em razão de estar diante de uma situação de segredo médico”. Analogamente, como aponta Cláudia Natividade, do Conselho Regional de Psicologia, a medida de delatar casos de mães usuárias representa “uma violência institucionalizada contra as mulheres”.
É histórica a luta feminista pela autonomia da mulher sobre seu corpo, na forma da garantia de direitos sexuais e reprodutivos. A criminalização do aborto, a realização de práticas como a laqueadura irregular, a entrega compulsória de filhas e filhos de usuárias são representações práticas de uma violação sistemática e institucionalizada dos direitos das mulheres. Presenciamos, mais uma vez, a limitação de direitos apenas para certos grupos de mulheres, o que é logicamente resultado de políticas estatais discriminatórias.
* Lucia Sestokas é assessora de programa do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.