Aborto não é matéria de prisão

Por Fernanda Nunes*

“E, no decorrer dos séculos, elas [as mulheres] não só permaneceram excluídas, mas foram culpabilizadas pelo pecado do mundo, foram demonizadas como bruxas e esvaziadas da sua condição de ser autônomo.”[1]

Historicamente, a criminalização de mulheres está ligada à punição daquelas que quebram estereótipos de gênero, transgredindo o padrão básico ligado à docilidade, fragilidade e submissão. Assim se prendia as bruxas, e hoje se prende mulheres que continuam não se enquadrando a tal padrão, como as mulheres que abortam.

No caso do crime de aborto, é possível observar o sistema penal atuando a todo vapor para garantir a dominação dos corpos das mulheres, sustentando uma ideologia patriarcal, que retira delas a escolha sobre a sua própria vida reprodutiva, relegando-a ao Estado.

É certo que o aborto se constitui um fato comum na vida reprodutiva de mulheres. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Aborto, no Brasil, 1 em cada 5 mulheres, aos 40 anos, já realizou pelo menos um aborto.

No entanto, se por um lado, o aborto atravessa a história de milhares de brasileiras, por outro, é um grupo específico que mais sofre com a sua criminalização: mulheres negras e pobres.

“Não é de hoje que se fala da seletividade penal e de como o sistema de justiça criminal atinge de forma mais contundente e violenta as pessoas pobres. E quando se fala do crime de aborto, esse perfil não muda. E por isso, tratar de mulheres criminalizadas pela prática de aborto, é também falar de privilégios e discriminações.”[2]

A pesquisa “Entre a morte e a prisão”, realizada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, investigou os processos criminais em decorrência dos artigos 124 a 126 do Código Penal[3], no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A pesquisa analisou 55 processos e dividiu as mulheres processadas em dois grupos: o primeiro, com mulheres que praticaram o aborto sozinhas ou que contaram com a ajuda de uma terceira pessoa para ajudá-la, quase sempre alguém do seu círculo familiar ou alguém com quem ela teve um relacionamento sexual. O segundo grupo é composto por casos de mulheres que praticaram aborto em clínicas clandestinas.

Segundo os dados da pesquisa, no primeiro grupo, 60% das mulheres são negras, 65% já tiveram filhos, mais de 80% tinham mais de 12 semanas de gestação ao realizarem o aborto. No segundo grupo de casos, o perfil é diferente, 53% são brancas, 75% já cursaram o 2º grau, em contraposição à 22% do primeiro grupo. A maior parte realizou a interrupção da gravidez em um momento mais prematuro da gestação, com menores complicações.

A comparação indica que, no primeiro grupo as mulheres negras são a maioria. Elas também são as que realizam o aborto em um estágio posterior da gestação, utilizando, muitas vezes, métodos inseguros, como aplicação intravaginal de objetos ou substâncias químicas.

Recorrer a procedimento inseguros, em estágios avançados da gestação, tem a ver com a falta de acesso a métodos menos inseguros, como a clínica, mas também com o medo de ser descoberta, já que essas mesmas mulheres que compõem do perfil desse primeiro grupo são o principal alvo do sistema de justiça criminal.

“Muito ao contrário de um projeto real de proteção à vida, estamos diante aqui da defesa de uma norma penal que não é capaz de atender a sua função declarada. Mas cumpre de uma maneira muito eficiente uma decisiva função retórica de manutenção de uma sociedade estruturada no racismo e no patriarcalismo.”[4]

As chamadas normas penais estão necessariamente atreladas à proteção de um bem jurídico, ou seja, algum valor considerado importante pelo sistema de justiça. No caso do crime de aborto, o bem jurídico a ser protegido é a vida intrauterina. No entanto, o alto índice de mulheres que continuam realizando aborto indica que essa norma é incapaz de proteger esse bem jurídico.

A criminalização, portanto, não evita que abortos sejam realizados. Sobretudo, dificulta o acesso a um procedimento seguro, impondo danos físicos e psicológicos às mulheres, principalmente às mulheres negras. Aqui, vale ressaltar que o Estado também impede o acesso ao aborto seguro ao criminalizar a comercialização ou distribuição do Cytotec, cujo princípio ativo é o misoprostol. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o misoprostol é o método recomendado para a realização de abortamento farmacológico[5] adotado por diversos países como França e Reino Unido, podendo ser ministrado com segurança por mulheres, com o acompanhamento de uma profissional da área da saúde.

Em agosto de 2018, foi realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) a audiência pública da ADPF 442, ação que tem como objeto a descriminalização do aborto no Brasil até a 12ª semana de gestação.

A audiência pública é uma ferramenta utilizada para promover a participação da sociedade civil em processos julgados pelo STF. Nela, são chamadas especialistas do tema em questão para trazerem argumentos e suas opiniões, que poderão embasar as decisões dos ministros na hora do julgamento. No caso, foram chamadas entidades pró e contra o aborto de diversas áreas e instituições.

O julgamento da ação não tem previsão, mas o momento da audiência pública foi essencial para mobilizar a sociedade civil e publicizar a discussão da descriminalização do aborto. Essa foi considerada a maior audiência pública da história do Tribunal, com maior número de expositores. A ADPF 442 é também a ação do STF com maior número de pedidos de ingresso como amicus curiae, ou seja, é inegável a relevância do tema e o engajamento da sociedade na pauta.

Aborto e o novo governo

Entretanto, se no ano passado, o momento da audiência pública foi extremamente importante para a luta pela descriminalização do aborto no Brasil, o início de 2019, e do novo Governo de Bolsonaro, já é marcado por uma série de ameaças aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Logo na primeira semana do novo Congresso, o Deputado Federal do PSL do Rio de Janeiro, Márcio Labre, apresentou um projeto de lei que tinha como objetivo proibir o uso da pílula do dia seguinte e outros métodos contraceptivos no Brasil. Segundo o parlamentar, métodos contraceptivos como DIU, pílulas anticoncepcionais e do dia seguinte são abortivas e não devem ser ofertados pelo Sistema Único de Saúde.

Aproximadamente seis horas depois da apresentação do PL, o Deputado voltou atrás e apresentou um requerimento para que a tramitação fosse suspensa. Segundo nota de sua assessoria, o texto era um rascunho e foi um erro protocolá-lo. Apesar de ter voltado atrás, ainda tramita outro projeto de lei do mesmo parlamentar que tem como objetivo enrijecer ainda mais a proibição do aborto no Brasil.

As ameaças não vêm apenas do poder legislativo. Em discurso recente na ONU, a atual Ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Damares Alves, defendeu “o direito à vida desde a concepção”. O posicionamento da Ministra demonstra a tendência do atual Governo de impulsionar uma série de retrocessos na área dos direitos das mulheres, adotando um discurso punitivista e contrário à descriminalização do aborto.

Assim, a mobilização pela garantia de direitos das mulheres deve se dar tanto na perspectiva de barrar possíveis retrocessos, que advêm de uma conjuntura nacional amplamente conservadora, mas também de uma perspectiva positiva de pressionar por avanços, como políticas de educação sexual e reprodutiva de fato eficazes para garantir a saúde das mulheres

Na pauta positiva, é importante pressionar para que a luta pela descriminalização do aborto ganhe visibilidade e força, ecoando as vozes das mulheres que cotidianamente têm violados os seus direitos à dignidade, liberdade, autonomia, e igualdade. Como destacado na fala de Débora Diniz[6], na audiência pública da ADPF 442, temos que nos perguntar o porquê de tão pouca razoabilidade nessa conversa. Porque aborto não é matéria de prisão, mas é de cuidado, de proteção e prevenção.

Notas

[1]  Trecho da fala da pastora Lusmarina Campos na audiência da ADPF 442, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RblN7f6Kg8o

[2] Trecho da fala da Defensora Pública do Estado de São Paulo, Ana Rita Souza Prata, na audiência da ADPF 442, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=La8DG6eLyyY&t=15051s

[3] Artigo que criminaliza o aborto no Código Penal.  
Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena – detenção, de um a três anos.

[4] Trecho da fala da Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro, Livia Miranda Müller Drumond na audiência da ADPF 442, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=La8DG6eLyyY&t=15051s

[5] Trecho da fala da Defensora Pública do Estado de São Paulo, Ana Rita Souza Prata, na audiência da ADPF 442, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=La8DG6eLyyY&t=15051s http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/70914/9789248548437_por.pdf;jsessionid=4C6083DB13ED2BFD6CFD9DEEAB6C2752?sequence=7. Acesso em 26/09/2018.

[6] Trecho da fala da Professora Débora Diniz, na audiência da ADPF 442, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=La8DG6eLyyY&t=15051s

*Fernanda Nunes é advogada e integrante do Projeto Gênero e Drogas do ITTC.


Foto: Fotografías Emergentes

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mar 7, 2019 | Noticias | 0 Comentários

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