Câmara Municipal de São Paulo discute encarceramento feminino em Audiência Pública

Debate trouxe relatos de mães que passaram pelo sistema e cobranças de organizações da sociedade civil para ações efetivas que reduzam o encarceramento de mulheres

O habeas corpus coletivo que coloca todas as presas provisórias grávidas ou mães com filhos de até 12 anos em regime domiciliar ainda repercute nacionalmente. Prova disso foi o auditório lotado da Câmara Municipal de São Paulo em plena terça-feira de manhã, quando o vereador Eduardo Suplicy iniciou a mesa de abertura da Audiência Pública “Mulheres Encarceradas”.

Jéssica Monteiro, a jovem que se tornou símbolo da situação de milhares de mães que passam pelo sistema de justiça criminal, deu seu depoimento logo no início da audiência. “Apenas por morar naquele lugar e ser quem a gente é, já estamos na suspeita para a polícia”, declarou. Jéssica teve seu primeiro filho aos 15 anos e o segundo bebê chegou às pressas em razão do nervosismo passado durante a espera da audiência de custódia, após uma ação da polícia militar encontrar no seu quartinho alguns gramas de maconha.

“Eles entraram e saíram mexendo em tudo. Quando eu comecei a passar mal na delegacia, pedi para me levarem para o hospital, porque já estava para ter o bebê, mas eles demoraram e disseram: ‘segura mais um pouco porque amanhã você tem audiência’”, afirmou a jovem. Mesmo após dar à luz, Jéssica teve sua prisão provisória decretada após a alta médica, sendo apenas liberada por um habeas corpus decorrente da repercussão de seu caso.

Casos como o de Jéssica não são exceções no sistema prisional. Outras mulheres levaram seus depoimentos sobre as condições das prisões, retratando casos explícitos de racismo, tortura psicológica e também física, principalmente cometidas pelo Grupo de Intervenção Rápida (GIR). Uma delas, Tainara Nascimento, disse que, após seu filho nascer, ela era mantida algemada à cama enquanto o bebê era levado para fazer exames, e que lhe foi negado o direito à amamentação pois seu filho era mais claro do que ela.

“Na penitenciária, recebíamos apenas três fraldas por dia, porém toda mãe sabe que isso não é suficiente. E quando a gente pedia mais, recebíamos notificação e até ameaças. Uma vez ouvi de uma funcionária que ela ia chamar o GIR para o meu filho conhecer os cachorros deles”, denunciou Tainara. A representante da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Gislaine Caresia, lamentou pelas histórias das mulheres, parabenizou o Supremo pela decisão do habeas corpus coletivo, trouxe dados nacionais da população feminina carcerária e alertou sobre a invisibilidade das mulheres, uma vez que é difícil conseguir dados seguros quando o assunto é justiça criminal.

Migrantes egressas

Gislaine também pontuou que, no caso das mulheres migrantes em conflito com a lei, a situação é ainda mais complicada, visto que muitas delas não conseguem tradutores de sua língua materna no dia do julgamento, e por isso não entendem a totalidade de seus processos. Para a advogada, o município precisa construir políticas públicas focadas no acesso ao trabalho e assegurar que as mulheres consigam acessar direitos básicos para saírem da situação vulnerável em que se encontram.

O padre Júlio Lancelotti, também presente na audiência, ressaltou a questão das migrantes, lembrando que estrangeiras que não têm documentos que comprovem residência fixa podem ter seu direito de prisão domiciliar negado. O padre criticou ainda o machismo, o racismo institucionalizado, que são exponencializados na prisão, e a falta de ação dos municípios em temas relacionados à justiça criminal.

População LGBTI

Eshiley Santiago, mulher trans e egressa do sistema penitenciário, retratou o cotidiano das pessoas trans na prisão. De acordo com ela, ninguém respeita o uso do nome social, muito embora seja do conhecimento das pessoas. “Na época que entrei, eles cortaram nossos cabelos quando chegamos e nos forçaram a ficar nas mesmas celas que os homens. Não houve continuidade do tratamento hormonal e nos forçaram a usar roupas masculinas, além de fazerem piadas constantes da gente”, afirma a mulher.

A bancada feminina da Câmara foi representada pelas vereadoras Juliana Cardoso (PT), Patrícia Bezerra (PSDB), Sâmia Bonfim (PSOL) e Soninha Francine (PPS). Todas manifestaram apoio às mulheres que deram seus depoimentos na audiência e lamentaram a situação que o encarceramento em massa proporciona às mulheres. “É um projeto não incluir uma camada da população ao total acesso de direitos e reservar a essas pessoas presídios, para que sejam sempre segregadas da sociedade”, afirmou a vereadora Sâmia Bonfim.

Políticas municipais                                                                                                                        

A pesquisadora do ITTC Raissa Belintani relembrou que a responsabilidade do assunto pertence a todos os entes federativos, e que o município não pode se eximir da responsabilidade. De acordo com ela, “essas pessoas são cidadãs e utilizam dos serviços municipais antes, durante e depois do encarceramento, e sua ineficácia acaba agravando o cenário”.

Raissa Belintani, integrante do Programa Justiça Sem Muros, fala sobre a situação das mulheres presas na audiência. Foto: Alexandre Gonçalves Jr

Raissa Belintani, integrante do Programa Justiça Sem Muros, fala sobre a atuação dos órgãos públicos para garantir os direitos das mulheres em situação de prisão. Foto: Alexandre Gonçalves Jr

“O ITTC lançou um material com propostas específicas que o município pode adotar para melhorar a situação descrita aqui pelas histórias dessas mulheres. Ouvimos essas demandas e construímos a Agenda Municipal para Justiça Criminal, justamente para sanar problemas que elas citaram hoje”, afirma a advogada.

Um ponto importante, também apontado na audiência e ressaltado por Belintani, é a necessidade de garantir o acesso ao SUS durante e depois do tempo de cumprimento da prisão. Todas as mulheres que deram seu depoimento na audiência retrataram dificuldades no acesso à saúde. Outro problema citado por elas foi a dificuldade em manter vínculos familiares quando as pessoas, principalmente mulheres, estão presas. Além disso, há a dificuldade de acesso à documentação necessária para acessarem moradia e trabalho após a saída da prisão. De acordo com elas, é sempre muito difícil retirar documentos básicos que as fariam acessar moradia e emprego e, assim, evitar a perpetuação de um ciclo de vulnerabilidade que as conduzam novamente ao encarceramento.

Outras entidades participaram do debate, como a Amparar, o Instituto Pro Bono e o Grupo Sarau de Portas Abertas.


Foto: Ana Navarrete | ITTC

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mar 5, 2018 | Noticias | 0 Comentários

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