No site do Governo do Estado de São Paulo há uma notícia que exalta a chamada “tropa de elite” do sistema prisional. O texto conta um pouco da história do Grupo de Intervenção Rápida (GIR), constituído para atuar “em situações críticas como a subversão da ordem e da disciplina, motins e rebeliões”, e ainda traz uma declaração do então comandante Saulo dos Santos Matos em que afirma: “Hoje estamos bem estruturados e prontos para enfrentar as situações mais delicadas”
Os relatos de familiares e pessoas egressas do sistema na Audiência Pública Grupo de Intervenção Rápida: articulando resistências, que aconteceu dia 28 de fevereiro no auditório da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, revelam um cenário diferente do publicizado pelo governo.
O GIR é matéria de denúncias da sociedade civil há muito tempo. Segundo o defensor público Thiago de Luna Cury, que abriu o evento, a audiência surgiu de reuniões do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC), do qual faz parte, com entidades da sociedade civil como o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC, a Pastoral Carcerária, o IBCCRIM, entre outras.
O objetivo da audiência foi criar um espaço para ouvir depoimentos de pessoas que sofrem, de alguma forma, a violência praticada cotidianamente pelo Grupo, a fim buscar soluções em conjunto com as entidades da sociedade civil e representantes do governo e do judiciário ali presentes. Para o defensor, um dos desafios para solucionar a truculência do GIR é que “a sociedade em geral não sabe nem da existência desse agrupamento”.
Apesar do desconhecimento do público geral, o GIR, composto por agentes da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) que recebem treinamento especial, se faz constantemente presente na vida das pessoas presas e de suas famílias. De acordo com Maria Railda da Silva, a AMPARAR, organização de familiares da qual faz parte, tem recebido mais denúncias do que nunca.
“Tão ameaçando, tão batendo e daqui a pouco vai vir a morte.” Gabriela Santos
O GIR, embora seja formado por agentes penitenciários, é um grupo treinado pela polícia militar e que age como tal. Sua existência é regulamentada por uma resolução da SAP que, além de não ter amparo constitucional, não especifica nenhuma forma de controle sobre sua atuação.
Segundo o também defensor público Gustavo Picchi, o que existem são “normas de ação”, às quais a Defensoria teve acesso por meio de uma medida judicial, mas que são “muito genéricas” e não se adequam às normativas nacionais e internacionais sobre o uso da força.
Em declaração disponível no site da SAP, consta que o GIR “vem se destacando pelos trabalhos oferecidos nas unidades prisionais, principalmente em momentos de crise”. De acordo com familiares presentes na audiência, o grupo realiza ações violentas sem motivo declarado nos presídios toda semana, além de acompanhar as visitas em algumas unidades prisionais.
O Padre José Ferreira da Silva, da Pastoral Carcerária, conseguiu, junto ao Conselho da Comunidade, que ambas as entidades sejam notificadas sempre que houver uma ação do GIR na região do Vale de Parnaíba, onde atua. Para ele, mesmo com o acompanhamento das ações, as torturas, principalmente psicológicas, não cessaram. “Nós amenizamos a situação, mas a postura do GIR precisa mudar”, afirmou.
“É um grupo de massacre que mata aos poucos e mata a gente também.” D. Lúcia
A presença massiva de mulheres na audiência reforça o que já é sabido sobre o sistema prisional. Apesar de ser composto majoritariamente por homens, a prisão se estende à família, que na esmagadora maioria dos casos é representada por mulheres. São mães, esposas, irmãs, que ficam responsáveis pelo sustento de seus lares fora da prisão e da pessoas que está presa. A violência sofrida por quem está na prisão também se estende a essas mulheres. Logo ao início de sua fala, Railda relembrou visitas à antiga FEBEM (hoje Fundação Casa) com uma companheira de luta que estava na plateia: “fomos xingadas de vagabundas para cima”.
A violência institucional exercida contra mulheres quase sempre possui viés de gênero. O relatório MulhereSemPrisao, realizado pelo ITTC e citado na audiência pela pesquisadora do Instituto Mariana Boujikian, entrevistou mulheres presas que também sofreram violências com a atuação do GIR. Em um dos relatos, Diana* contou que os agentes entraram “jogando bala de borracha, bomba, você apanha. Na hora que você passa pelo corredor, eles já vão te batendo.”
Quem deixa acontecer?
Entre relatos e denúncias, uma das falas mais importantes da noite aconteceu perto do final da audiência. Heloísa Sanches, que visita seu filho preso, se direcionou à mesa para fazer uma pergunta: Eu queria saber quem é que deixa isso acontecer?
Essa e outras falas durante o evento levantaram o debate sobre quem é responsável pelas violações do GIR, para além da culpabilização de indivíduos. Tanto Railda quanto Gustavo falaram sobre a precarização dos profissionais do GIR e do entendimento comum de que o Grupo faz parte de uma política de segurança pública baseada na violência e na tortura. Segundo o defensor público, ainda, “é preciso pensar que o GIR não tortura sozinho. (…) Existem outras instituições que, quando se omitem, também torturam. A Defensoria, o MP, o judiciário, a polícia”.
“11 anos que ele está lá e 11 anos que a gente está nessa luta para ele tratar da perna dele” Daniela Bassan
Apesar das notas oficiais sobre o GIR alegarem que sua atuação é “pautada pelo uso escalonado da força, de maneira estritamente não letal”, Daniela Bassan compartilhou que seu marido, preso desde 2007, possui ordens judiciais para tratar de um problema na perna. Todas elas, segundo ela, foram desacatadas pelo diretor da unidade onde está preso. Em uma intervenção do GIR no meio do ano passado, ela conta que ele foi espancado. Segundo Daniela, o GIR bateu na perna dele e disse que era para aleijá-lo.
Maria de Lourdes, que visita o filho na prisão, reiterou a violência denunciada por Daniela. “Encostaram a faca no pescoço do meu filho e disseram que se ele não fizesse o que eles queriam, iam matá-lo”, contou.
Além da Defensoria Pública, representantes do governo também foram cobrados para pautar a situação do sistema prisional como um todo. O vereador Eduardo Suplicy (PT) foi o único que se pronunciou e se comprometeu em levar para o Secretário de Segurança Pública Lourival Gomes e para o Governador do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin as demandas levantadas nessa audiência e na Audiência Pública sobre Mulheres Encarceradas organizada por ele no dia anterior.
A urgência em discutir a atuação do GIR surge também em meio a duas Propostas de Emenda à Constituição que tramitam há algum tempo na Câmara e no Senado e que, caso aprovados, podem legitimar a existência do agrupamento. Para saber mais acesse a PEC 308/2004 aqui e a PEC 14/2016 aqui.
*Nome alterado para preservar a identidade da entrevistada
Foto: Reprodução | Ouvidoria Geral da Defensoria Pública de São Paulo