Garotas no cárcere: um retrato dos impactos da guerra às drogas

Nova série documental da Netflix retrata os dilemas e perspectivas de adolescentes encarceradas nos EUA

Por Letícia Vieira

Falar em encarceramento implica em entender uma série de saberes que se articulam e se interseccionam de forma complexa e muitas vezes desigual. De maneira prática esse debate envolve a compreensão não só dos tipos de crimes que estão levando as pessoas para a prisão, mas o contexto no qual as pessoas que os cometem estão inseridas.

Com um olhar voltado para o subjetivo dessas pessoas, a nova série documental da Netflix, Garotas no cárcere (Girls Incarcerated), tenta cumprir a proposta. Problemas relacionados aos bailes de formatura, castigos dos pais, notas baixas e paixões juvenis não são os principais tópicos da vida dessas adolescentes.

Acompanhando a rotina de adolescentes presas no Centro de Correção Juvenil de Madison (Madison Juvenile Correctional Facility), localizado no estado de Indiana nos EUA, a adolescência perde o tom superficial, corriqueiro e nostálgico, geralmente retratado nas produções americanas.

O objetivo da série, já enunciado na sinopse, é documentar como as adolescentes passam por uma fase repleta de transformações e questionamentos dentro do cárcere. As trajetórias das adolescentes já marcadas por diversas violações são introduzidas pouco a pouco aos espectadores, revelando problemas que passam da esfera individual para a coletiva.

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Quem são as garotas no cárcere?
Najwa Pollard e Brianna Guerra olhando na janela, cena de Garotas no cárcere. Foto: Divulgação | Netflix.

Foto: Divulgação | Netflix

Ao longo dos oito episódios, acompanhamos a história de mais de dez garotas. O ponto de intersecção entre as suas histórias não é apenas o fato de estarem no mesmo local, mas também o que as levou para lá.

Alexis, Armani, Aubrey, Brianna, Cassie, Chrissy, Courtney, Faith, Heidi, Najwa, Paige, Sarah e Taryn são as treze garotas que contam suas histórias e dividem os dias entre a angústia do cárcere e as perspectivas do que as esperam lá fora.

Em sua maioria, as garotas residiam no que é chamado de gueto nos EUA, esses bairros são alvos recorrentes da ação violenta da polícia e da guerra às drogas. Esse último fator é presente e dominante na trajetória das garotas, quase todas durante suas entrevistas e depoimentos relatam o envolvimento com crimes relacionados a drogas, assim como o uso delas.

Os EUA é o país com mais pessoas encarceradas no mundo, são mais de 2 milhões de pessoas presas. Uma proporção de mais de 600 pessoas presas a cada 100 mil habitantes. Além dos índices elevados de encarceramento em massa, o país é também o primeiro que mais encarcera mulheres.

Os índices apresentados fazem parte da vida dessas garotas desde cedo, em quase todos os casos os familiares ou parentes tiveram envolvimento com o uso ou crimes relacionados às drogas.

A vida das garotas no cárcere

Foto: Divulgação | Netflix.

Logo no primeiro episódio da série nos é apresentado o Centro de Correção Juvenil de Madison, uma prisão de segurança máxima destinada apenas para garotas. A estrutura chama a atenção, são vários blocos e prédios rodeados por metros e metros de gramado, destinados a recreação das garotas.

Quem nos apresenta a instituição e todo o método utilizado é diretor do Centro e não é só a dimensão do terreno ocupado que impressiona, mas também todos os aparatos e funcionários envolvidos no programa. Lá as garotas contam com um prédio para escola e também para recreação e exercícios, aulas com número reduzido de alunas em classe, salas de recreação com acesso a televisão, jogos eletrônicos e de tabuleiro, quartos com apenas uma ou duas pessoas e também acompanhamento psicológico regular.

Diferentemente das prisões para adultos, no Centro de Madison as garotas não cumprem uma pena estipulada, poucos casos são dessa forma. Na verdade, elas têm que cumprir um programa de reabilitação, pois a maioria delas sofrem de dependência química. Isso acarreta em uma série de burocracias para elas deixarem o local.

Se o acesso aos direitos básicos como saúde e educação são contemplados, o ambiente se torna um campo minado devido ao controle e vigilância excessiva. Horários bem definidos e regrados compõem a rotina das adolescentes que são responsáveis pela limpeza de locais de convivência e em alguns níveis também podem trabalhar no refeitório do local e serem pagas por isso. A autonomia para autogestão em alguns aspectos, como a organização do espaço, ali é bastante notável.

Os níveis também é uma forma de regular as relações: cumprindo algumas exigências e apresentando bom comportamento, elas recebem notas que as levam a tão cobiçada camisa bordô. Quem a veste tem acesso a uma série de privilégios. Mas as exigências são diversas para manter a camisa, bom rendimento escolar e bom comportamento (o que envolve não receber advertências, não brigar com funcionários e outras meninas) são algumas delas.

Outro aspecto peculiar do controle exercido sobre as garotas é a penalidade pelo contato físico entre elas, característica também presente nos presídios femininos do Brasil. Em uma fase, na qual o afeto é uma das formas mais genuínas de relacionar-se, a penalidade se torna um gatilho para muitas brigas, principalmente com os funcionários do local.

Leia também: “O que o caso de Ross Ulbricht nos ensina sobre a guerra às drogas?”

A exceção ou a falta de políticas?

Dentre os casos apresentados, um chama a atenção. Taryn escolheu estar no Centro. Nesse ponto da narrativa é perceptível como a escolha de como retratar a rotina e a vida das garotas ali deixa lacunas de informação para quem está assistindo. Em alguns momentos, parece que as meninas podem ir para lá por três vias: escolha própria, prisão pela polícia ou denúncia dos pais.

Taryn foi para lá após um acidente de carro, em que ela dirigia, e amiga com quem estava falecer no acidente. O caminho tomado por ela mostra a perspectiva que todas de alguma forma cultivam: o desejo de mudança. Ao mesmo tempo traz questionamentos. Será que a prisão é o local que oferecerá recursos para isso?

Apesar de a série não trazer dados sobre encarceramento na cidade de Madison ou até mesmo no estado de Indiana, fica claro que a guerra às drogas é o fator que mais tem encarcerado as meninas. Se ali dentro elas vão ter aparatos para tratar a dependência e traçar um novo caminho, lá fora não será da mesma forma. O caso de Taryn e os casos de reincidência apresentados deixa isso claro, a ausência de políticas que pontuem o combate ao encarceramento em massa.

 

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abr 5, 2018 | Noticias | 0 Comentários

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