Dando continuidade aos textos analisando o Infopen Mulheres 2017 e visando refletir sobre as características do estado que mais encarcera mulheres no país, neste texto discutiremos os dados referentes ao perfil da população prisional feminina em São Paulo.
Maternidade
A maternidade é uma das questões fundamentais para compreender as especificidades de gênero dentro do sistema prisional. Como revelam pesquisas do ITTC, a maioria das mulheres em conflito com a lei é mãe. Normativas internacionais como as Regras de Bangkok ressaltam a importância se coletar dados sobre maternidade a fim de avaliar o impacto das prisões não só na vida das mulheres, mas também de seus filhos, e assim priorizar penas não privativas de liberdade para aquelas com filhos pequenos ou gestantes. Refletindo de forma mais ampla sobre a maternidade como trabalho essencial para a reprodução da vida, o encarceramento de mulheres mães impacta diretamente a economia familiar e a formação de jovens e crianças. É dizer, o encarceramento de mães é o ínicio de um ciclo que pode influenciar a evasão escolar, o trabalho infantil e o ingresso nas redes de tráfico ou organizações por parte de jovens e crianças.
A despeito da importância do mapeamento dessas informações, é justamente na temática da maternidade que o Infopen Mulheres apresenta suas principais fragilidades. O relatório de 2016 aponta que as informações a respeito de quantas mulheres dentro do sistema prisional eram mães estava disponível somente para 7% do total de mulheres presas, sem mencionar a representatividade dessa amostra segundo o estado. Já no relatório de 2017, não há menção sobre a porcentagem de mulheres em privação de liberdade com filhos.
Há, contudo, informações sobre a quantidade e a idade de filhos pequenos em estabelecimentos penais. Em 2017 houve uma redução significativa no número de crianças nestes estabelecimentos em relação ao ano anterior, tanto a nível nacional como estadual. Todavia, não é possível saber se tal redução reflete a realidade ou se deu em função de uma menor taxa de respostas das unidades prisionais em torno dessa questão. Neste sentido, reiteramos a fragilidade dos dados apresentados nos dois próximos parágrafos.
Em 2017, o estado de São Paulo apresentava 84 filhos alocados em estabelecimentos penais, sendo 82 deles bebês de zero a seis meses, e 2 com até um ano. Esses dados chamam atenção pela importância, nessa faixa etária, do estabelecimento dos vínculos entre mãe e filho com a necessidade correlata de um local adequado para atender as especificidades tanto das mulheres quanto dos bebês, principalmente no que tange ao aleitamento materno. Já no ano anterior, o estado de São Paulo concentrava 505 bebês e crianças em estabelecimentos penais, sendo a maioria delas (342) com idade superior a 3 anos.
Já a nível nacional, a redução não foi tão expressiva como no contexto paulista, caindo de 1.111 bebês e crianças em estabelecimentos penais no Brasil em 2016, para 705 no ano seguinte. Apesar da aparente redução, ainda é preocupante que mais de 700 bebês e crianças estejam nessa situação.
Consideramos que o cárcere é um ambiente inóspito e violador de direitos de forma geral, sendo um local completamente inadequado para o exercício da maternidade, e os dados a respeito da infraestrutura reforçam essa visão. Em 2017, o estado de São Paulo possuía cerca de 8 unidades prisionais com celas adaptadas ou adequadas para mulheres gestantes, unidades essas que representam apenas 36,4% do total de unidades prisionais femininas do estado que responderam ao levantamento.
Essa quantidade restrita de unidades com celas adaptadas tem reflexo na quantidade de mulheres gestantes atendidas por essa política: em 2017 apenas 46,9% das gestantes presas estão em espaços minimamente adequados no estado de São Paulo, em um total de 143 gestantes. Em 2016, esse índice era ainda mais baixo, de 169 gestantes com informações disponíveis, apenas 36% delas estavam custodiadas em celas adequadas.
É possível perceber certa redução no número de mulheres gestantes e lactantes presas, principalmente nesse último grupo. Comparativamente, entre 2016 e 2017 houve uma diminuição de cerca de 23% no índice de mulheres lactantes e de 15% de gestantes presas em São Paulo. É possível dizer que essa mudança esteja associada à implementação do Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), que ampliou as possibilidades de prisão domiciliar para mulheres com filhos de até 12 anos.
Tanto o Marco Legal da Primeira Infância quanto a implementação das audiências de custódia podem estar associados a uma considerável queda na taxa de ocupação das unidades femininas conforme verifica-se na comparação dos relatórios. Em 2016, a taxa de ocupação das unidades prisionais femininas era de 124%, passando a 102% em 2017. Por outro lado, a taxa de ocupação nas unidades masculinas continua elevada, apesar de também apresentar redução: de 187% em 2016 para 168% em 2017. Comparativamente, a diminuição nas unidades femininas e masculinas é semelhante: 22% nas primeiras e 19% nas segundas. Porém a superlotação apresenta-se como um cenário dramático no caso masculino.
Perfil das mulheres presas no estado de São Paulo
Em relação à faixa etária das mulheres presas no estado paulista, houve uma leve redução de mulheres jovens, indo de 50% de mulheres até 29 anos em 2016 para 45% em 2016. Mais uma vez, é possível que esse número esteja associado à implementação do Marco Legal e das audiências de custódia, que interferiram positivamente, ainda que de maneira limitada, no encarceramento de mulheres jovens.
O relatório do Infopen Mulheres 2016 apresenta uma nota pontuando que as informações sobre cor/etnia, ainda que utilizem as mesmas categorias do IBGE, não coletam os dados da mesma forma. Enquanto o IBGE coleta as informações a partir da autodeclaração, os dados do Infopen são coletados a partir do preenchimento dos gestores das unidades prisionais, o que gera dúvidas sobre a confiabilidade dessas informações. Já o relatório de 2017 não menciona a forma de coleta, mas tudo leva a crer que os mesmos critérios foram mantidos.
De todo modo, uma alteração relevante é que no relatório de 2017 as categorias “preta” e “parda” foram desagregadas, enquanto no relatório de 2016 as duas categorias eram somadas e compunham a categoria “negras”. Em 2016, a maioria das mulheres presas no estado de São Paulo foram classificadas como negras, representando 56%, enquanto 44% foram identificadas como brancas. Já em 2017, com as categorias desagrupadas, 42,23% das mulheres foram identificadas como pardas e 13,12% como pretas/negras, ao passo que 44,58% das mulheres foram consideradas brancas, 0,07% amarelas e 0,01% indígenas.
Por não serem coletados a partir da autodeclaração, é possível que esses dados não sejam tão representativos, mas servem como ponto de partida para análises a respeito da questão étnico-racial e os índices de encarceramento no Brasil.
A escolaridade das mulheres custodiadas nas prisões paulistas não apresentou diferenças significativas entre os relatórios de 2016 e 2017: as mulheres com ensino fundamental incompleto são a maioria, correspondendo 38,32% em 2017 e a 39% em 2016. Em segundo lugar, no relatório de 2017 estão as mulheres com ensino médio completo, com 18,4%, enquanto que em 2016 esse grupo representava 17%.
Em relação ao estado civil, também não foram identificadas mudanças significativas no relatório de 2017 em relação ao ano anterior. A maioria das mulheres em privação de liberdade no estado de São Paulo é solteira (55,4%), seguidas por mulheres em união estável (28,50%) e casadas (8,72%).. Há ainda 2,54% de viúvas, 3,42 divorciadas e 1,28% separadas judicialmente. Como a coleta de dados não permite cruzamentos entre variáveis de perfil, não é possível aprofundar na situação familiar dessas mulheres, como, por exemplo, quantidade de filhos versus estado civil. Com isso, perde-se a oportunidade de uma análise mais transversal do perfil das mulheres.
A comparação entre os relatórios também apontou uma diminuição no número de mulheres com deficiência presas, tanto nacionalmente quanto no estado de São Paulo. Em 2016 eram 220 mulheres, sendo que o estado de São Paulo, sozinho, respondia por cerca de 44% dessas mulheres. Por sua vez, em 2017, o total de mulheres com deficiência presas era de 170, sendo o estado de São Paulo responsável pela custódia de aproximadamente ¼ (24%) delas. Apesar da redução, o estado de São Paulo o continua com o número mais elevado em relação aos outros estados da federação, alçando, portanto, maior representatividade no índice nacional.
É interessante desagregar esses dados de acordo com o tipo de deficiência. Cabe sublinhar que ambos relatórios não esclarecem a fonte de informação obtida pela unidade prisional acerca da deficiência. Ainda, considerando as dificuldades de acesso aos sistema de saúde dentro das unidades, é possível que esses números sejam subnotificados, especialmente em se tratando de deficiências que exigem diagnóstico médico para que sejam identificadas.
* Nota: O relatório apresenta as seguintes definições:
Pessoas com deficiência intelectual: “apresentam limitações no funcionamento mental, afetando tarefas de comunicação, cuidados pessoais, relacionamento social, segurança, determinação, funções acadêmicas, lazer e trabalho”.
Pessoas com deficiência auditiva: “apresentam perda total da capacidade auditiva. Perda comprovada da capacidade auditiva entre 95% e 100%”.
Pessoas com deficiência visual: “não possuem a capacidade física de enxergar por total falta de acuidade visual”.
Pessoas com deficiências múltiplas: “apresentam duas ou mais deficiências”.
Os dados da tabela mostram que a diminuição no número de mulheres com deficiência presas advém principalmente da categorias de mulheres com deficiência intelectual. Porém, em se tratando de uma deficiência que necessita de diagnóstico médico, é possível aduzir que essa diminuição pode também estar associada, em parte, à falta de diagnósticos. O número de mulheres com deficiência auditiva e visual, bem como com múltiplas deficiências permaneceu inalterado, o que aponta para a falta de políticas desencarceradoras específicas a esse público. Essa ausência é ainda mais alarmante no caso de mulheres com deficiências físicas, que teve um aumento no período em análise. Por ser uma deficiência manifesta, principalmente entre as mulheres cadeirantes, desvela o alcance do punitivismo mesmo entre grupos manifestamente vulneráveis.
Os relatórios também esclarecem a capacidade das unidades que custodiam essas mulheres em cumprir com as regras de acessibilidade, tendo em consideração o disposto no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015). Apesar de não haver informações desagregadas a nível estadual, os relatórios de 2016 e 2017 disponibilizam informações a respeito da quantidade de mulheres portadoras de deficiência alocadas em unidades adaptadas.
Comparando os dados entre os dois anos é possível identificar que houve um aumento na porcentagem de mulheres portadoras de deficiência em unidades não adaptadas no Brasil. Em 2016 esse índice era de 60%, e no ano seguinte subiu para 73,5%. Ainda em 2017, somente 8,2% das mulheres com deficiência estavam em unidades adaptadas, enquanto 18,2% estavam em unidades parcialmente adaptadas.
No que tange às mulheres migrantes, diferentemente do Infopen Mulheres 2016, que indica que as informações coletadas provinham de apenas 89% das unidades respondentes, o relatório de 2017 não fornece informações sobre o índice de unidades respondentes.
De 2016 para 2017 houve uma queda significativa no número de mulheres migrantes custodiadas em unidades prisionais brasileiras. Em 2016, havia 529 cidadãs não-brasileiras no país, sendo 63% delas apenas no estado de São Paulo. Já em 2017, o total de mulheres estrangeiras presas no Brasil caiu para 382, com São Paulo concentrando 74,5% desse público.
Por outro lado, se consideramos a representação de migrantes dentro do total de presas por estado em 2017, as migrantes representam 2,3% da população prisional feminina em São Paulo, ao passo que entre a população prisional feminina do Roraima e Mato Grosso do Sul, estados que partilham fronteiras com outros países latino-americanos, por exemplo, as migrantes representam 3,16% e 2,73%, respectivamente.
Em 2016, mulheres migrantes representavam cerca de 4,5% da população prisional feminina do estado do Amazonas. Já no relatório de 2017, o estado não apresenta nenhuma mulher migrante em privação de liberdade. Entretanto, não é possível saber se de fato houve o desencarceramento de migrantes ou se o estado não apresentou os dados.
A tabela abaixo resume as informações especificamente sobre a nacionalidade das mulheres migrantes presas no estado de São Paulo nos relatórios do Infopen Mulheres de 2016 e 2017.
Esse terceiro texto da Série “Analisando o Infopen Mulheres”, ao lançar luz sobre o perfil das mulheres em privação de liberdade no estado de São Paulo, sublinhou os limites metodológicos decorrentes do tipo de coleta de dados implementada pelo Infopen, principalmente no que tange aos marcadores sociais da diferença.
Por exemplo, o fato de não se ter segurança sobre a origem dos dados sobre cor e etnia acaba invisibilizando a seletividade penal em relação a determinados grupos específicos. Ainda, a incerteza sobre a quantidade de mulheres com deficiência em privação de liberdade também fragiliza o mapeamento das políticas de desencarceramento voltadas a esse grupo.
Sem instrumentos de coleta adequados e confiáveis para compreender a realidade das mulheres presas, não apenas no Brasil, mas principalmente em São Paulo, estado que mais encarcera, não é possível formular políticas mais efetivas voltadas a esses grupos mais vulneráveis. Importa ressaltar, ainda, que a impossibilidade de estabelecer cruzamentos entre essas variáveis também impede a verificação da interseccionalidade entre os marcadores sociais. Com isso, não é possível medir o grau de vulnerabilidade a que estão submetidas não apenas as mulheres, mas também suas famílias.
Por Gabriela Menezes e Violeta Pereira
Leia também os outros textos da série Infopen Mulheres 2017:
Infopen Mulheres 2017: O que mudou em um ano?
Olhando para o encarceramento feminino no estado de São Paulo
Direito à saúde, educação e trabalho